Capa: Peneira indígena. Acervo de etnologia indígena brasileira do Museu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil. Fotografia. Crédito Dornicke, 2015. Wikipedia. Licença CC-BY-SA-4.0.
Culturas Indígenas e Educação
Hoje existem respeitosas intenções escritas na Constituição Brasileira de 1988. Ela reconhece para as culturas indígenas o direito de viver e as outorga consequentemente direito à territórios próprios e educação “diferenciada”.
Ser professor é saber aprender descobrindo junto com os outros; é também saber orientar as pesquisas dos alunos na comunidade. São os próprios alunos que descobrem o mundo, como ele é, e como funcionam as coisas e as pessoas. Professor não é para trazer coisas de fora; é para ajudar a melhor mergulhar, conscientemente, dentro da cultura da comunidade, registrá-la e reforçá-la com a participação das crianças.
Ser professor é ser um modesto catalisador das iniciativas para descobertas, autodescobertas e redescobertas da riqueza das criações intelectuais e materiais da comunidade na sua cultura própria.
Abrir os olhos criticamente para o que é seu, reconhecer nas coisas concretas já fabricadas propriedades físicas e conceitos matemáticos utilizados por todas as civilizações; aprender fazendo, experimentando com o que se constrói de verdade.
Isto é o que se vive em oficinas, uma maneira de aprender juntos na sala de aula e fora dela. Também aprende-se a escutar as pessoas que sabem porque fazem, particularmente as mulheres, investigando com elas os ciclos de produção e preparação da mandioca, chegando assim à descoberta tuyuka dos processos de evolução e seleção nos seres vivos, colocados em prática pelas mulheres centenas de anos antes do Alfred Wallace inspirar-se no próprio Rio Negro e Darwin publicar a teoria da origem das espécies.
A atuação relatada neste texto e proposta como semente pedagógica numa “diferenciada educação escolar indígena” pretende contribuir ao autofortalecimento das culturas indígenas frente à historicamente insistente penetração militar, religiosa, comercial, escravizante e escolarizante, à qual cada povo foi submetido nos tristes 500 anos de contato esmagador.
Hoje, existem respeitosas intenções escritas na Constituição brasileira de 1988. Ela reconhece para as culturas indígenas o direito de viver e as outorga consequentemente direito à territórios próprios e educação “diferenciada”. Mas aquele respeito não se reflete no tom e no conteúdo das perguntas que a grande maioria das pessoas me fazem, no saguão de uma universidade ou no botequim, ao saberem que acabei de voltar do que eles chamam de “fundo da floresta amazônica” em vez de Terras Indígenas Demarcadas.
E ao mesmo tempo que alguns técnicos brancos e suas ONGs se colocam inteiramente ao serviço de e reforçam a sobrevivência própria de grupos indígenas, ensinando piscicultura, apoiando escolhas próprias de cada grupo linguístico para poder escrever sua língua com facilidade ou organizando a comercialização direta de artesanato, encontramos ainda também os candidatos a Mestrado de universidades da Virgínia ou de Santa Catarina, em linguística ou em bioquímica. Estudando para si próprios a língua de um povo para outros linguistas gozarem e lhe conferir um canudo acadêmico; ou estudando e experimentando com os princípios alucinógenos dos cipós utilizados em cerimônias rituais para outros antropólogos científicos gozarem e lhe conferir o canudo daquela corporação. E encontramos ainda o pretendido “perito em línguas dos outros” que decreta “errada” toda ortografia indígena que não siga todas as rígidas convenções fonéticas inventadas por pesquisadores brancos descomprometidos com a vida indígena.
É, portanto, num contexto ainda invasivo que os povos indígenas estão definindo o uso que podem fazer daquela oferta constitucional de “educação diferenciada”. Minha prática, que proponho a outros educadores viver de coração aberto, insere-se no que Amilcar Cabral chamava de “resistência cultural” [Análise de alguns tipos de resistência, 1969] quando criava um sistema educacional novo nos territórios libertados do colonialismo português na Guiné Bissau antes da obtenção da independência nacional pela luta armada.
O texto que segue se dirige aos professores indígenas e às pessoas que aceitam a delicadíssima tarefa de “forma”-los. Mostra, através de exemplos de atividades, como eu, na posição docente, trabalhei na comunidade para juntos encontrar coisas do seu interesse, construir na sua língua conceitos úteis, criando assim uma educação formal própria, diferenciada do rígido monumento alheio de “ciência e matemática” construído pelos brancos.
SUA LINGUA É SUA
A sua língua é sua. Ela é indígena. Você a usa, você a ensina, você alfabetiza as crianças com ela, você e toda sua comunidade a escreve. Com ela vocês vivem a sua vida, fazem e constroem, contam e registram a sua cultura.
É nesta língua, paterna ou materna, dependendo dos povos, que se introduz a escrita e a leitura.
É nesta língua que se discute a história, que se estuda a natureza, ao longo dos níveis de escolarização formalizados à sua maneira.
É na língua da comunidade que se “alfabetiza”, no ato de expressar e registrar o mundo com palavras suas. Para quem esta ideia é nova, lembramos dois fatos:
1) a suposta “alfabetização em Português” nunca aconteceu (um índio adulto lembrará que até a 4a série, mesmo apanhando, somente conseguia dizer “bom dia padre” e não escrevia frases. “Escutava” português, mas falava apenas suas línguas familiares).
2) A impossibilidade de ter êxito ao forçar a primeira escrita/leitura numa língua diferente da língua falada na família foi comprovada em numerosos estudos de Departamentos de Educação de Universidades da Califórnia onde vivem várias “minorias” étnicas recém emigradas nos Estados Unidos. Por isso, lá, a primeira (e única necessária) alfabetização é oferecida em muitas línguas desde espanhol até chinês em escolas públicas, apesar das pressões nacionalistas para impor a língua inglesa. Para 50% da população atual da Califórnia a língua inglesa é língua estrangeira aprendida como segunda língua.
Para se comunicar com outras comunidades e quando casar [muitas vezes com outras culturas indígenas], homens e mulheres indígenas precisam conhecer outras línguas. Cada um as aprende quando precisar, ao longo da vida.
Para enfrentar o mundo do branco invasor das terras e das mentes indígenas, para poder negociar com ele, para poder reconquistar a independência administrativa e ideológica necessária para controlar o sistema educacional dito indígena, mas concedido pelo mundo de fala portuguesa, é necessário ensinar também a língua portuguesa no momento escolar certo, quando já tem consciência da necessidade de usa-la. Mas o português é língua estrangeira para os índios que vivem em território hoje brasileiro, como o francês é língua estrangeira para os índios que vivem em território hoje francês na Guiana Francesa.
SUA CIÊNCIA É SUA. SUA MATEMÁTICA É SUA.
Como sua língua, as suas técnicas são suas. Elas são indígenas.
Você as usa, as passa de geração em geração.
Você as ensina na comunidade; cada um fabrica sua canoa, suas redes, seu tipiti, seu abanador de fogo, seus cestos, seus instrumentos musicais, seus brinquedos.
Com essas técnicas vocês mantém a sua vida material e registram a sua cultura. Os conteúdos daquelas técnicas se ensinam na sua língua, como língua de instrução.
Na interação com outros povos vocês descobrem que existem outras técnicas, desenvolvidas por outras pessoas.
No Alto Rio Negro, os Maku fabricam os cestos cargueiros que todos os outros povos utilizam. Aquela técnica é deles. É uma outra língua técnica.
Para enfrentar o mundo todo tecnologificado do branco invasor você precisará conhecê-lo no momento educacional certo, quando terá necessidade de uso, depois de ter sido alfabetizado tecnicamente nos conteúdos matemáticos e científicos da sua própria comunidade, na sua própria língua, a partir dos conteúdos das suas próprias técnicas.
A matemática na qual o mundo “global” externo se apoia é uma linguagem estrangeira; está formulada em português nos livros didáticos “oficiais”; foi colocada no ensino europeu por educadores europeus submissos frente ao pensar específico de um grupo de matemáticos franceses dedicados à generalização formal de todo e qualquer conceito; ficou distorcida e caricaturalmente formal nas sucessivas traduções e adaptações que sofreu nos livros didáticos tanto europeus como dos países ditos “em desenvolvimento” atrelados à ideologia neocolonial….. Não pode servir na educação indígena.
Não é no “fim do mundo” além-Atlântico europeu que devemos ir buscar um modelo para ensinar matemática e ciência entre indígenas.
Precisamos alfabetizar-nos todos técnico-cientificamente, redescobrindo juntos (e isso é ensinar) a matemática e a ciência maternas e paternas contidas nas coisas técnicas indígenas que mantém a vida.
SER EDUCADOR INDÍGENA
Cada professor indígena e cada formador de professores indígenas precisa convencer-se, pelo estudo e pela prática de uma pesquisa coletiva na comunidade, que existe uma riqueza própria em cada indivíduo e em todo povo indígena, nos domínios chamados de “Matemática e Ciência”.
Cada povo, cada civilização, no mundo inteiro, criou sua própria maneira de contar, de fazer medições de distâncias, áreas, volumes; de criar desenhos de construções ou decorativos (de fazer “geometria”); de estabelecer regras e “provas” para os mais variados jogos; de produzir superfícies e volumes a partir de fibras entrelaçadas de maneiras muito bem definidas e classificáveis (na cestaria).
Houve trocas e migrações ao longo da historia da humanidade em toda sua diversidade. Mas a matemática dos europeus de hoje, a matemática dos que pretendem nos globalizar até extinção das nossas diferenças criativas, é meramente uma expressão particular e reduzida do pensar humano em questões de matemática.
Por exemplo, cada educador em meio indígena deve saber que o povo indígena Maya, cujos descendentes formam parte do movimento indígena Zapatista de Libertação no estado de Chiapas no sul do México, tinha livros antes dos conquistadores europeus chegarem [e queimarem quase todos!].
E que sobraram apenas três livros dos milhares que foram queimados pelo primeiro Bispo da região.
Que um destes livros contém tabelas astronômicas de grande precisão sobre os eclipses de Sol e Lua e sobre as posições de Vênus, que nos permitem prever os eclipses de hoje.
Que a base de numeração, utilizada para ordenação e contagem, utilizada pelos Maya era de vinte (vintena e suas potências) e não de dez (dezena e suas potências) como a dos Indianos que chegou aos Árabes e depois aos Portugueses e agora domina no mundo da Organização Mundial do Comercio (OMC).
E que a notação usada para escrever números era de posição e utilizava um símbolo especial para o zero, isto 700 anos antes dos Europeus começarem a usar um símbolo para o zero.
Aquilo deve nos ajudar a reconsiderar [e combater] o que dizem os livros dos colonialistas:
“índios contam até 3 ou 4, e depois dizem ‘muito’ “… [visão preconceituosa dos processos de colonização]
Cada educador em meio indígena deve aprender as variadas maneiras de “fazer matemática” desenvolvidas pelos povos antes de serem submetidos à colonização europeia.
Dois decolonizadores da Matemática Africana
Cada pessoa educadora deve ler o livro da professora e etnomatemática Claudia Zaslavsky, (1917-2006), “A África Conta”, cuja edição original com o título “Africa Counts” aconteceu em 1970 e foi uma revolução nos meios universitários americanos que tiveram que reconhecer a existência das matemáticas das populações indígenas da África, [incluindo sistemas numéricos multiplicativos de diferentes bases] e, portanto, respeitá-las.
Outro livro indispensável de ler, e a partir do qual é também indispensável praticar o que apresenta, é: “Desenhos da África” por Paulus Gerdes, Editora Scipione, São Paulo, 1990.
[O Professor naturalizado moçambicano, Paulus Pierre Joseph Gerdes (1952-2014) desenvolveu e orientou em Moçambique muitos estudos em EtnoMatemática e algumas de suas produções podem ser encontradas gratuitamente no site Lulu: https://www.lulu.com/spotlight/pgerdes. As obras também podem ser compradas eletronicamente ajudando a manter o fundo Paulus Gerdes].
O QUE FAZER. COMO FAZER
Para dar um exemplo de como proceder, aqui está a meta que me foi dada por Flora Cabalzar, coordenadora do projeto Escola Tuyuka pelo Instituto Socioambiental, antes de ir passar um primeiro período de 10 dias numa comunidade tuyuka do Alto Rio Tiquié em 2001:
“…na matemática precisamos começar um trabalho consistente de pesquisa com os tuyuka, de pesquisas a serem encaminhadas pelos professores e interessados das comunidades, que avance como pesquisa mas também como melhoria da qualidade do ensino.
Que torne claro o caráter interdisciplinar dos temas de pesquisa, e que dê rumos claros para o ensino/pesquisa de conhecimentos matemáticos.”
Cheguei, portanto, com a meta de ajudar a comunidade a se auto-descobrir. Meu papel de professor foi de solicitador de material para estudo.
Eu não trouxe nada do mundo exterior branco senão minha honestidade frente ao valor de idéias matemático-científicas que, ao detecta-las, achei útil remexer a partir de e no seio da cultura local.
Nesta “educação indígena”, tuyuka no caso presente, “diferenciada” da educação escolar brasileira, libertada tanto do seu formalismo pedagógico como da sua “grade curricular” encarceradora, participamos, Flora e eu, da continuada criação de um estilo de trabalho que envolveu toda a comunidade (durante um total de quinze dias em duas etapas) e os professores e alunos da iniciante 5a série da Escola Poani (durante 10 dias da segunda etapa).
Tudo na língua tuyuka; eu conseguindo intervir graças ao apoio das pessoas que “escutam” português; Flora e professores indígenas sempre sistematizando na escrita tuyuka no quadro negro o que se descobria, se elaborava, registrando assim a construção de conceitos e as propriedades em curso de descobrimento e análise.
Nas primeiras oficinas pedi aos participantes trazerem objetos úteis que eles próprios fabricam. Apontei que achava que, em todo uso de técnicas de construção aparecia algo que se conta, algo que se mede.
Então apareceu o seguinte fato linguístico: os tuyuka falam de contar e medir com a mesma palavra: KEORE.
Pedi a eles então que conversassem entre si, na língua tuyuka, sobre como contar e medir (dando exemplos concretos das duas coisas para diferenciá-las, até quando conversadas na língua tuyuka).
Ao querer falar da espessura da parede de uma canoa precisa-se de algum instrumento de medida, precisa estar de acordo sobre alguma unidade a ser utilizada para contá-la e “medir” a dita espessura.
Os tuyuka utilizam a largura de um dedo como unidade de medição para esta espessura. “A canoa de 5 bancos tem espessura de 3 dedos. A de 4 bancos, uma espessura de 2 dedos. A de 3 bancos, uma espessura de 1 dedo.
” Depois enriquece-se a conversa ao descobrir como se obtém tais espessuras finais a partir de um tronco inicial. Todo o processo de fabricação e de determinação da espessura da parede das canoas se torna objeto de registro mais e mais detalhado.
A fotografia acima foi tomada na própria escola tuyuka. Aqui se discute como avaliar a distância e a posição dos bancos numa canoa.
Qual o tamanho da vara? Porque? O que se mede com ela e porque? Estes “qual”, “porque” e “como”, no fazer medições, são procedimentos matemáticos.
Um grupo da comunidade decidiu apresentar como são fabricadas as redes de pescar. Apareceram então as varetas-padrão que permitem manter constante o tamanho da malha de cada rede específica.
Apareceram cinco padrões. Para medir o tamanho de uma malha esticada utiliza-se de novo a largura de um dedo.
Podemos então “ordenar” as várias redes e também correlaciona-las com os tamanhos dos peixes que se pretende pegar.
Esta possível “ordenação” corresponde a uma operação matemática fundamental para estudar conjuntos de quaisquer coisas.
Fazer tabelas com os possíveis tamanhos das redes numa direção e os peixes que apanham na outra, permite introduzir as noções gerais de “incluir” e “excluir”, de “maior”, “menor”, “filtrar para cima”, “filtrar para baixo”.
Aqui, sim, o professor indígena precisa ter alguma formação na qual estes conceitos (que são comuns a todo exercer da matemática em qualquer parte do mundo) foram encontrados nas mesmas práticas que serão depois utilizadas na escola com as crianças.
É aqui que o formador de professores indígena precisa ser culto em matemática, o que significa ter encontrado estes conceitos em outros estudos de etnomatemática, sabendo portanto reconhecer sua universalidade atrás da diversidade das suas concretizações.
Esta atitude pedagógica é totalmente diferente do que se pratica nas congeladas salas de aula pelo Brasil e fora dele.
Nelas dá-se nomes formais a coisas abstratas e os alunos apenas repetem estes nomes (o “precursor” de 4 é 3, e o “sucessor” de 5 é 6) que parecem não ter nenhuma utilidade, e de fato não tem quando apresentados sem razão prática de existir.
No nosso caso da investigação dos tamanhos das malhas das redes, organizamos sistematicamente as redes e os peixes (de tamanho adulto) que conseguem apanhar e os que escapam. Assim organizamos e classificamos peixes e redes por tamanhos “sucessivos”.
Foi para generalizar aquele conceito que matemáticos franceses criaram as palavras gerais “sucessor” e “precursor”. Pode não ser de grande utilidade imediata no alto Rio Tiquié saber aquela história.
A conto aqui porque ela surgiu dos questionamentos que a comunidade me fez durante nossas oficinas. Assim o formador pode chegar a enriquecer a pesquisa, dando exemplos tirados da matemática dos brancos, como pode, em outros momentos, dar exemplos tirados da matemática dos antigos Egípcios.
Mas, primeiro e profundamente, o formador ajudou a comunidade a analisar, organizar, registrar seus conhecimentos próprios e seus procedimentos no que diz respeito à fabricação e utilização de redes de pescar.
Ao fazer isto, fez também matemática, o que possibilitou olhar para práticas matemáticas de outros povos a partir das práticas da própria comunidade.
Ele ajudou o povo tuyuka a se sentir mais seguro, a superar o reducionismo pedagógico dos brancos, e a viver atividades matemáticas bastante mais ricas do que um treinamento “curricular” nas “quatro operações”…
De fato, aquelas operações foram também desenvolvidas e utilizadas, por necessidade, ao estudar os tamanhos das redes.
Mais importante ainda que alcançar noções de conceitos matemáticos de utilidade geral a partir de vivências da comunidade, este procedimento fez todos os participantes exercitar de verdade (por ter necessidade de fazê-lo) sua capacidade de contar na sua língua e de operar comparações.
O professor-matemático-formador não entendia as discussões em língua tuyuka; não importava; não era para ele que se trabalhava! Os membros da comunidade fizeram aquele organizar e ordenar acontecer na língua tuyuka e nomes foram escolhidos e construídos para estas operações.
Este processo é o mesmo que cada cultura utiliza para definir sua “linguagem matemática”.
Grande parte dos conteúdos escolhidos para este trabalho de dinamização do processo de estudo para viver, saiu dos registros feitos pelos próprios jovens nos seus cadernos (na 4a série) durante o semestre entre as duas etapas do nosso trabalho conjunto.
Por exemplo, a listagem de plantas, acompanhada de desenhos nos levou ao estudo do que se chama “simetrias” geométricas nas flores, frutas, sementes e na distribuição espacial dos vários elementos e orgãos das plantas, como as espirais que aparecem na organização das folhas do abacaxi ou da mandioca……
Aquele estudo de regularidades e das operações correspondentes (deslocamento, rotação, reflexão, etc.) tornou-se muito útil no estudo de objetos manufaturados na comunidade (bancos, cestos, brinquedos), e até no estudo cultural, geométrico e de construção, junto com “os velhos” na “sala de aula”, do yuiró.
A construção daquele objeto porta-cuia de aspecto cônico, com sua relação com o “ser tuyuka”, tornou-se novamente possível através deste estudo respeitoso e ao mesmo tempo matematicamente exigente.
Cada pessoa se deu conta que não sabia fabricar aquele objeto, mas soube, num esforço comunitário e tecnicamente criativo reiniciar a sua confecção, sabendo agora, que, além dos seus valores tradicionais, o yuiró é uma construção de dois “hiperbolóides de revolução” gerados por retas e tangentes entre si no cipó da primeira amarração.
Cada pessoa, jovem e “velho”, construiu o seu yuiró e fez matemática ao mesmo tempo. Todos juntos construímos e registramos cultura no mundo e na escrita tuyuka para outros tuyuka poderem viver mais completos.
Vários temas envolveram estudos experimentais e de construção manual, fora e dentro da “sala”, por exemplo a procura do “centro de massa” de objetos de formas estendidas, a meta sendo, inicialmente e em parte, entender porque uma flecha tem as várias características que tem.
Claro, precisávamos juntos reconhecer primeiro estas características: onde a flecha para caça pesa mais, qual o papel do rabo comprido e reto, com ou sem penas; como estão colocadas as penas em diferentes culturas indígenas.
Outro tema estudado foi o seguir do passar do tempo diário através da observação do deslocamento de sombras no chão e nas bordas de um cesto redondo colocado na vertical com um pino horizontal no seu centro para criar a sombra útil.
Mas essa atividade, requerendo observações contínuas e repetidas, perdeu-se na parte “ocidentalizada” do mundo inteletual dos professores tuyuka já poluído pelas perguntas escutadas no mundo branco sobre “se a terra gira ao redor do sol ou o sol ao redor da terra”.
Aquela poluição, cunha de entrada para uma visão reducionista do mundo natural ao confundir educação e escolha entre respostas contraditórias, está impedindo uma redescoberta própria genuinamente honesta (é para isto que serve a palavra “diferenciada” na “educação diferenciada”) – a partir do que os próprios tuyuka observam e vivem há milhares de anos na região equatorial da Terra, num processo da elaboração de uma compreensão tuyuka do que nós brancos chamamos de astronomia e aprendemos (se não meramente nos livros teóricos) a partir de observações feitas e pensadas na nossa realidade nas latitudes temperadas das matrizes dos impérios coloniais.
Precisa-se de uma volta às fontes de observação local verdadeira para construir aquele mundo de entendimento do grande mundo cósmico dentro da vida experiencial e linguistica tuyuka.
Outras oficinas / treinamentos de professores, olhando para cima, para o céu verdadeiro deles, precisam acontecer.
* Maurice Bazin, é físico francês, ex-professor do Exploratorium de San Francisco (EUA) e mora em Florianópolis/SC – Brasil