Maurice Bazin: Cientista, cidadão do mundo!

Capa: Criança sonhando em ser aviador, com asas de papelão. Imagem de Freepik.

Artigo original de Jorge Esteves Silva. Especial para o Anexo. A Notícia. 9 de maio de 1999.

Reproduzimos abaixo a incrível entrevista de Maurice Bazin, realizada pelo cientista político Jorge Esteves Silva.

Físico francês que mora em Florianópolis fala sobre a responsabilidade social dos cientistas

Quando nos anos 70 colaborei na publicação de um pequeno texto de Maurice Jacques Bazin [1934-2009], um conhecido físico francês, com o sugestivo título “A Ciência, os Cientistas e o Terceiro Mundo” [publicado em Science for the People, maio, 1972], não imaginava que muitos anos mais tarde o viria a conhecer na Ilha de Santa Catarina. Poderia pensar-se que a ilha é pequena, mas de fato o mundo é que se tornou pequeno nesta época de globalização. De certa forma, para Bazin, o mundo sempre foi assim, pois andou de país em país como um verdadeiro cidadão do mundo.

A crítica da ciência começava a despontar na década de 60, quer pelo envolvimento dos cientistas com as máquinas de guerra, quer pelo uso instrumental da ciência que deixava fora dos benefícios do desenvolvimento tecnológico e científico a maioria da população, principalmente do chamado Terceiro Mundo.

É certo que essa má consciência dos cientistas já vinha detrás; os físicos estavam atormentados, desde 1945, pelos fantasmas das milhares de vítimas inocentes que tinham resultado da aplicação prática das pesquisas sobre energia nuclear, que resultaram na bomba atômica.

Maurice Bazin foi um discípulo dessa geração e deles herdou não só o seu conhecimento, como uma acentuada preocupação com o papel social do cientista e as consequências do uso da ciência.

Nascido em Paris em 1934, passou pela famosa Escola Politécnica, onde se destacou. De lá foi para os Estados Unidos da América para fazer o doutoramento, em 1962, na Universidade de Stanford, em física experimental de altas energias com o grupo do professor Panofsky [Wolfgang Kurt Hermann “Pief” Panofsky (1919 – 2007)], um dos pais da bomba atômica.

Com o matemático Menahem Max Schiffer (1911 – 1997) e o físico Ronald John Adler escreveu o livro “Introduction to General Relativity” (1ª edição em 1965), que se tornou uma obra de referência no ensino da física no campo da Teoria da Relatividade Geral.

Em 1962, voltou para França para pesquisar partículas elementares na Escola Politécnica, em Paris, e no CERN (Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire, atualmente Organização Europeia para a Investigação Nuclear). Mas regressou no ano seguinte aos Estados Unidos da América para ensinar na Universidade de Princeton. Em 1968, foi para a Universidade de Rutgers, em Nova Jersey. Nesta universidade criou um curso inovador: Ciência e os Povos do Terceiro Mundo.

Após a revolução de abril de 1974, que derrubou a ditadura portuguesa, participou da criação do Departamento de Física da Universidade de Évora, tendo publicado então o livro Ciência e (In)dependência.

Em 1979, veio para o Rio de Janeiro para o Departamento de Física da PUC/RJ. Interessado na formação de professores, colaborou em programas da ONU e da Unesco na Venezuela, em Cuba, no Chile, em Angola e Moçambique. Nesses programas de cooperação conheceu Paulo Freire, de quem se tornou amigo.

Depois de visitar o Exploratorium, em San Francisco (EUA), o mais famoso museu de ciência do mundo, trouxe para o Brasil novas ideias de divulgação científica que aplicou, junto com cientistas brasileiros, em projetos como Seis e Meia da Ciência, da SBPC.

A fundação do Espaço Ciência Viva, que desenvolveu projetos de popularização da ciência com escolas públicas e associações de moradores, veio na continuidade desses projetos.

A partir de 1990, dividiu seu trabalho entre o Espaço Ciência Viva, no Rio de Janeiro e o Exploratorium, em São Francisco, onde foi codiretor do Teacher Institute (Instituto de Formação de Professores). Nos últimos anos deu vários cursos e palestras em Florianópolis no departamento de educação da UFSC.

A partir do começo deste ano vive na Ilha de Santa Catarina, para onde se mudou com a família de armas e bagagens ou, melhor dizendo, com ideias e bagagens. Porque suas ideias e bagagem intelectual são suas armas e capital. Esperemos que esse conhecimento, acumulado ao longo de sua brilhante carreira intelectual, possa ser investido nesta Ilha que agora também é sua.

ENTREVISTA MAURICE BAZIN

A primeira pergunta não poderia deixar de ser: como um físico francês, depois de correr o mundo, deixa São Francisco e vem aterrissar no Campeche, muitos anos depois de Saint-Exupéry?

Maurice Bazin ­

Li Antoine de Saint-Exupéry [autor de O Aviador, O Pequeno Príncipe, Voo Noturno, Terra dos Homens) na minha juventude em Paris, por volta de 1950, como dizem os historiadores. Aquelas leituras faziam sonhar com países distantes, montanhas altas, perigos nos Andes, muita coragem e dedicação humana.

Pequeno Príncipe viajando pelo mundo. Imagem criada por IA BING IMAGES, em 23/12/2023.

Criança urbana francesa, colecionava selos e sonhava com outras terras. Limitadas aos passeios até as pracinhas da cidade, com seu quadrado de areia seca e poeirenta, já cercadas pelo trânsito de automóvel, as crianças adoravam os relatos de voos sobre o deserto e o oceano, cada um parecendo mais infinito que o outro nos livros de Saint-Exupéry.

Ser aviador do transporte do correio internacional entre a Europa e a América do Sul era nosso sonho profissional. Não virei piloto, mas, como Saint-Exupéry, aterrissei no Campeche. De certa forma, o meu sonho realizou-se.

O Campeche agora faz parte da minha realidade, com gente, muita gente boa, que começo a conhecer pouco a pouco, ao ritmo das amizades, das trocas de mudas e miudezas que ainda ocorrem nos recantos da Ilha.

Antes de vir para aqui vivia em São Francisco, uma cidade americana ainda viável, de tamanho razoável (uns 750 mil habitantes) e com uma profunda tradição de tolerância. Ali, policiais homossexuais desfilam abertamente na Gay Parade anualmente, na Market Street, artéria principal da cidade, e o prefeito é negro.

O problema é que esta realidade pode ser apontada como excepcional. Lá, como no resto dos Estados Unidos da América, a referência à raça de uns e à origem cultural de outros (aos 35% dos que falam espanhol em casa ou à existência de uma “cidade chinesa com seus jornais”) continua forte. Tanto é assim que a praga dos bairros residenciais racialmente segregados se repete dentro de São Francisco, e nesse contexto urbano existe violência: andar dois quarteirões representa o perigo de um assalto mortal.

As drogas são outra ameaça e estão longe dos tempos do seu uso adolescente na forma de um suave fuminho, no contexto do movimento de contracultura dos anos 60, num “verão de amor” no imenso parque da cidade, o Golden Gate Park. Hoje, o que temos é um mercado que leva crack aos pobres e cocaína aos executivos dos arranha-céus da Market Street. Uma das consequências dessa proliferação é a criação de turmas pré-escolares especiais para acolher os filhos e filhas das mães viciadas.

Mas, essa cidade também possui, desde 1969, um museu interativo de ciências, o Exploratorium, que inspirou todos os centros de ciências e museus de ciência e tecnologia criados nos últimos 20 anos no mundo inteiro. Uma boa parte das experiências presentes no recém-inaugurado Museu de Ciências e Tecnologia, na PUC de Porto Alegre, foi baseada nas criações originais do Exploratorium. Nesse museu trabalhei vários anos, ajudando professores do ensino primário e secundário a fazer ciência, reunindo docentes e estudantes, sem batas brancas e sem carteiras, mas com muitos materiais simples para mexer e dessa forma organizar nosso entendimento dos fenômenos da natureza.

Então, por que deixei esse mundo? Aposentei-me! Mas, na verdade, eu já conhecia o Brasil há vários anos através de uma companheira brasileira que conheci na época em que viveu no exílio. Após isso vim para o Rio de Janeiro e participei da criação de um museu chamado Espaço Ciência Viva. Foi lá que conheci, há uns dez anos atrás, alguns estudantes e uma professora da Universidade Federal de Santa Catarina que tinham ido conhecer esse espaço de educação não formal em ciências.

Aquelas visitas se repetiram e me levaram a conhecer mais jovens estudantes provenientes da Ilha. Depois, fui convidado pelo Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina, ofereci sessões de trabalhos experimentais que chamamos oficinas de ciências. Uma estudante de Educação em Ciências, que se tornou minha orientanda, mencionou o Campeche como lugar ainda meio rural e não contaminado pela “turistite”.

Nasceu assim a ideia de comprar um terreno, planejar uma casa, deixar as plantas crescerem. Aqui estou eu, feliz, principalmente agora que nasceu meu filho Eric, em casa, pelas mãos de Pedro Schmidt, o conhecido Pedrão. Esta ilha deve ser o único lugar do mundo que tem um médico surfista, ecologista, voador e parteiro!

Vivo entre o mar e o Morro do Lampião, aquele onde todas as noites se acendia o lampião que guiava o avião [da famosa Epopeia L’ Aeropostale] de Guillaumet, Jean Mermoz e Saint-Exupéry para pousar no Campeche.

Um dos temas que há longos anos você vem tratando é o da responsabilidade social do cientista. Num mundo em que físicos, químicos, biólogos continuam servindo aos interesses mais espúrios do Estado e das empresas transnacionais, como vê a atualidade dessa discussão?

Maurice Bazin ­

Discutir a responsabilidade social do cientista é uma necessidade cada vez maior. Até porque existe a tentação dos cientistas suporem que são donos da verdade e, portanto, e poderem pesquisar com a mesma ingenuidade com que brincamos na infância.

A pesquisa de certa forma é a brincadeira e gozo dos cientistas. E fazem isso utilizando o apoio financeiro de outros, menos ingênuos, interessados nos seus trabalhos. Isso já vem de longe. Galileu vendeu sua luneta em Veneza para os mercadores identificarem as embarcações comerciais com antecedência e saber que mercadorias iam chegar; os físicos americanos trabalharam para o Pentágono desenhando armas com raios laser e, hoje, os biólogos vendem patentes de manipulação genética para as transnacionais que controlam o mercado de sementes. Então, esta discussão é mais atual do que nunca para toda a sociedade.

Hoje, com toda a distorção do que é liberdade individual, ninguém mais pergunta porque alguém coloca um brinco ou pinta o cabelo de verde. Imagine, então, questionar alguém sobre sua atividade profissional ou de pesquisa. Sem entrar em grandes análises históricas, posso apontar que os cientistas quase sempre tiveram o privilegio de desenvolver suas pesquisas sem ter que se submeter a qualquer tipo de crítica.

Se você é cineasta, sua produção é apresentada a críticos de cinema.

Se você é músico, sua interpretação das obras clássicas será julgada pelos críticos de música clássica.

Se você é compositor, romancista, poeta, terá resenhas das suas obras feitas por pessoas independentes e o próprio público se sente à vontade para criticar.

Mas, se você é cientista ninguém o criticará ou o avaliará, a não ser seus colegas mais próximos, quando você publica academicamente para os outros especialistas da sua área de atuação.

Os cientistas continuam gozando deste privilégio. Mas esse fato não contribui para que eles possam fazer seu trabalho de forma independente. As suas pesquisas hoje precisam de dinheiro, de laboratórios bem equipados.

Quem paga tudo isso é quem controla o que se faz.

A escolha livre dos temas de pesquisa é um mito; os recursos financeiros e os apoios são distribuídos de acordo com as escolhas das entidades financeiras, sejam governamentais ou privadas, através dos seus editais.

Quando o Pentágono oferecia financiamento para pesquisa em matemática combinatória, era para avançar no seu objetivo de aperfeiçoar a técnica de cifrar e decifrar mensagens secretas…

Nos anos 70 eu dizia, como outros nessa época, que hoje talvez tenham opiniões diferentes:

“A ciência deveria ser feita para o povo, e servir para o bem-estar de todos”.

Esse é ainda o nosso desafio.

Como cientista e como cidadão, como você vê a relação entre progresso e meio ambiente?

Maurice Bazin ­

Catastrófica! Principalmente porque o mundo oficial sempre pretende que exista uma solução tecnológica para os problemas gerados pelas escolhas tecnológicas prévias que não deram certo.

O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, que participou da fundação da Universidade de São Paulo em 1936, colocou esta situação nos seguintes termos no seu último livro, “Saudades do Brasil“.

“Quanto ao progresso, ele se devora a si próprio. Mais e mais, os avanços da ciência e da tecnologia, incluindo as conquistas da medicina ­ benfeitora dos indivíduos e malfeitora da espécie humana ­ tem como principal benefício, e muitas vezes como desculpa, compensar as consequências nefastas engendradas pelos progressos anteriores. Assim, outras consequências nefastas resultam para as quais será necessário inventar outros progressos para remediá-las.”

E a cada passo, o ambiente no qual vivem as pessoas se degrada mais. A tecnologia e a ideia de “progresso“, estão intimamente ligados ao processo de urbanização. Sem elas, não se construiriam edifícios ditos habitacionais de 20 andares, verdadeiros caixotes de luxo, onde os moradores se encontram apenas para brigar nas reuniões de condomínio, e os adolescentes se reúnem nos pequenos espaços fechados para festas rituais de agitação corporal aos estrondos de algum ritmo elementar.

Numa sociedade que caminha a passos largos para um modelo de organização e produção em que o conhecimento e a ciência são centrais, quais as possibilidades dos países periféricos e do Terceiro Mundo também se inserirem nesse novo ciclo?

Maurice Bazin ­

Quando lia Saint-Exupéry não se falava de desenvolvimento. Falava-se dos povos das “colônias” aprenderem as coisas certas com a ajuda dos colonizadores. Eram considerados ainda incapazes de se autogovernar. Precisavam aprender como fazer eleições e montarem suas democracias ditas representativas.

A independência política era considerada como uma aventura perigosa.

As imagens utilizadas eram de países-nenéns, flutuando no oceano das realidades internacionais, sem conhecimento dos perigos e dos riscos de tempestades, barcos frágeis que precisavam da escolta dos navios-pais para sustentá-los.

Esse paternalismo neocolonial funcionava muito bem na cabeça das pessoas da Europa. Como a colonização tinha consistido em conquistas bastante violentas, era necessário realçar o lado “civilizador” das intervenções europeias, mostrar fotografias de hospitais, explorar a fundo. Hoje a gente diria “fazer uma operação mediática sobre”, o humanismo do doutor Schweitzer no Congo, confortando leprosos num isolado miniposto de saúde no meio de um vasto continente, medicando de dia e tocando Bach no órgão à tardinha…

Hoje, todos estes países têm suas representações na Organização das Nações Unidas, vivendo em edifícios luxuosos em Nova York. Esses diplomatas sabem apreciar champanhe e as elites do hemisfério sul agora querem fazer das suas cidades, seja Conakry ou Florianópolis, metrópoles “modernas”. Constroem prédios, e quanto mais altos melhores, e estradas que chamam de “super highways” para levar essa minoria dos seus gabinetes para o aeroporto, muitas vezes, passando entre favelas. Qual a necessidade disto para o resto do povo?

O abismo político, financeiro, tecnológico e científico que separa os países do Primeiro Mundo dos países de África e América Latina não cessou de se alargar, mesmo que nestes continentes alguns possam viver despreocupadamente como se estivessem também no Primeiro Mundo.

É possível formar cientistas nesses países evitando, numa economia globalizada, que eles acabem indo para os países que possuem os centros de pesquisa mais avançados?

Maurice Bazin ­

Os cientistas, como o resto das pessoas, costumam ser atraídos pelas vantagens ou facilidades que podem encontrar nos países chamados do Primeiro Mundo. Evidentemente que salários, reconhecimento e acesso a meios tecnológicos avançados são um fator que têm levado muitos cientistas e pesquisadores brilhantes de países pobres ou periféricos a emigrarem.

O resultado é a emigração dos melhores pesquisadores e estudantes dos países subdesenvolvidos. No entanto, isso também está ligado à compreensão do mundo que eles têm ou não têm, já que a possibilidade de retornar a seus países e trabalharem virados para a suas realidades locais também existe, embora isso muitas vezes represente uma frustração pessoal, face às necessidades elementares, falta de apoio e estruturas que encontram em seus países de origem. Mas mais um vez isso depende da consciência e responsabilidade social do cientista e do pesquisador.

Na sociedade atual, onde tudo está monetarizado, a arte e a ciência não escapam, os humanos que as fazem são iguais a todos os outros…

Nos vários cenários de desenvolvimento que se costuma apontar para Florianópolis, um é o da consolidação de um polo turístico; outro, o de um polo científico e tecnológico. Como vê as possibilidades desses projetos?

Maurice Bazin ­

Pobre Ilha. Querem “abri-la” de todo jeito e a todo vapor. Mas sem passar pela etapa da máquina a vapor! Porque a Europa, por exemplo, passou por várias etapas no caminho do “progresso” e se modificou pouco a pouco, sem decretar alguma “vocação” repentina para suas regiões.

O evoluir da organização social da Europa aconteceu antes do automóvel existir. Claro que o século 20 viu muitas mudanças e implantou-as num ritmo mais acelerado. Isso provocou, também, a concentração do poder de quem decide e implementa as novas mudanças.

O poder do mundo dos que detém os recursos financeiros, o capital, ou dos que detém prestígio e relações nos meios internacionais para contrair empréstimos e financiar esse “progresso” é total.

Aqui, tudo chega de uma vez, e chega de fora, querem importar um modelo pronto: Miami Beach…

Será esse o modelo ideal para esta ilha no hemisfério sul?

A turistite dura uns dois ou três meses. No entanto, suas consequências negativas são duradouras e definitivas. Toda aquela infraestrutura, muitas vezes criada com dinheiro público, fica vazia ou subutilizada durante o resto do ano, mas os manguezais foram aterrados, a mata derrubada e as dunas ocupadas.

A nossa bela paisagem está ficando escondida por detrás das construções e um dia destes só poderá ser vista em pôsteres de agências de viagens, muitas vezes reproduzindo fotos antigas do que não existe mais. Além de tudo isso, ninguém parece levar em conta as pessoas que povoam a Ilha, os próprios moradores. Os que moram nas ruas ainda tranquilas do Campeche, Ratones ou Rio Vermelho, que têm vacas no pasto e cultivam uma horta, qual o seu futuro?

Os planejadores sequer imaginam a possibilidade de se manter na ilha qualquer uso rural ou qualquer forma de agricultura, horticultura e floricultura.

Existe alguma boa razão para comprar leite “longa vida” esterilizado num supermercado quando meus vizinhos têm vacas e bezerros? Imagine o caminho feito pelo líquido da caixinha longa vida (que muitas vezes vem da Argentina e do Uruguai), o custo das andanças daquela caixinha, e também o nível de esterilização e a quantidade de aditivos. Mas, o pior: tudo isso é visto como “natural”.

A ilha não precisa de produzir e, numa inversão de valores, as pessoas chegaram a ter medo de beber o leite da vaca da Dona Rosa. O estilo tecnológico de vida nos leva a esquecer que uma fervura rápida do leite tirado da vaca resolve qualquer risco para a saúde humana.

Não é brincar de naturalista; é viver com o que se tem, com o que as pessoas sabem fazer e procurar a autossuficiência.

Até o estrume da vaquinha serve na minha horta ou jardim. Não vejo necessidade de integrar nossa ilha ­ Santa Catarina ou o Brasil ­ na demência universal, ou global, se prefere. Aqui, por exemplo, temos universidades públicas que podem ter um importante papel na vida intelectual da ilha e do Estado, principalmente se forem capazes de pensar a partir da nossa história e da nossa realidade, não da importação de modelos de desenvolvimento ou modas teóricas, que tantas vezes são pura propaganda.

Atrair os estudantes e as pessoas em geral para o conhecimento científico tem sido uma das suas ocupações ou diversões preferidas. Já está procurando algum galpão no Campeche para o nosso museu da ciência viva?

Maurice Bazin ­

Para fazer uma ciência viva não precisamos de galpão, embora possa ajudar. Bastam pessoas ensinando e aprendendo juntas.

Matemática pode ser aprendida a partir de um cesto guarani.

Com uma simples luneta podemos contemplar o cosmos, e reunindo as pessoas mais velhas de uma comunidade, como está fazendo o grupo das ervas da Armação, é possível recolher e transmitir conhecimentos sobre ervas e medicina tradicional.

Um passeio pela mata do Parque da Lagoa Peri é mais eficaz como aula de ecologia ou botânica que muitos dias numa sala fechada de uma escola.

Por tudo isso, como fazem os pescadores e rendeiras da ilha, também eu estou tecendo minha rede ou minha renda de relações pessoais. Com essas pessoas irei procurar retomar a prática educacional de oficinas de ciências e levá-las às escolas.

Quem sabe vamos observar o firmamento uma noite destas para compreender até que ponto esta ilha é bela, pequena e viva…

Jorge Esteves Silva é membro do Centro de Estudos Cultura e Cidadania (CECCA-SC, fundada em 1990) .

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