Re-Inventando a Escola: Paulo Freire

Um encontro inédito entre Paulo e Madalena Freire organizado pela Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, SMED-Coragem de Mudar em 27 de maio de 1992, tendo como secretária Esther Pillar Grossi. Pai e filha num diálogo que extrapola de muito a esfera familiar e enriquece o Brasil.

A contribuição de Paulo Freire à causa da educação já está incorporada à história: desde a “Pedagogia do Oprimido”- livro inaugural da sua visão antropológica da educação – onde Paulo Freire começa a nos mostrar como “a palavra ajuda o homem a tornar-se homem”, o movimento educacional no Brasil e na América Latina em especial, e no mundo em geral, têm encontrado em Paulo Freire uma referência fundamental.

De Madalena Freire pode-se dizer que a especialidade é o processo da formação do educador, o qual ela associa esplendidamente à componente paixão. Ela nos desvenda o papel das trocas, do grupal, da formação do grupo o qual ela enriquece e explicita com a dimensão desafiante da democracia.

VIVER E EXISTIR

Como eu sou um homem que

se preocupa muito

com a aventura,

com a liberdade,

com o risco, com o prazer,

com a dor, com a paixão,

com sentimento,

com ternura, com rigor,

com limites, com prazos,

com rigorosidade

na aproximação, enquanto sujeito,

do objeto que eu quero conhecer.

Como eu sou preocupado com o pensar,

com a construção do pensar,

indissociável da linguagem,

e com os dois indissociáveis com o mundo,

com a realidade concreta.

Eu sempre quando falo, quando escrevo, quando leio, quando penso, eu sempre penso no risco de falar, de escrever, de pensar, de ficar calado.

Não há possibilidade de existir sem a consciência do risco. O que é possível, é viver arriscadamente sem, porém, saber que se corre risco, mas existir não!

Por exemplo, em nossa casa, há duas jabuticabeiras que enquanto expressões e momentos de vida, correm risco. O risco, por exemplo, que eu e minha mulher endoideçamos e cometamos o crime de corta-las.  Mas as jabuticabeiras que estão próximas uma da outra, jamais trocarão ideias sobre este risco. O risco existe aderido a suas vidas. Mas o risco não é objeto do seu pensar que não existe.

Sob a sombra das jabuticabeiras, nós temos um casal de pastores alemães que vivem num nível superior, ou pelo menos diferente, ao nível de vida das jabuticabeiras. Ou seja, Gil e Anka (os nomes dos meus bem amados pastores), se locomovem, andam, correm, latem, expressam sensibilidade, afetividade,

medo também, recusa, procura, correm risco. O risco de que os maltratemos, por exemplo. O risco de que não cuidemos bem deles. Mas também não discutiram ainda sobre este risco.

Quer dizer, vivem um risco que não é assumido. Nós corremos os riscos e os assumimos. E é interessante por que inclusive quando negamos o risco, estamos assumindo um risco. Só que de forma alienada, negativa, como se estivéssemos querendo que ele inexistisse.

Eu talvez pudesse dizer que a passagem do nível da vida para a primeira grande invenção – que é uma reinvenção desde o seu começo – é a passagem da vida para a existência.

Quer dizer, ao longo da história nós nos tornamos capazes de inventar a existência. A existência é uma criação das mulheres e dos homens. Existir, por isso, é mais do que viver porque existir é o resultado do trabalho criador e recriador que mulheres e homens, através dos tempos, fizeram sobre os materiais que a vida ofereceu às mulheres e aos homens.

Foi trabalhando a vida que a gente se fez existente.

Ora, é por isso que eu quero começar a conversar e a pensar sobre a reinvenção da escola, dizendo que ela corre um imenso risco.

Há uma coisa que eu não posso fazer: é falar ou escrever ou pensar – a não ser dialeticamente. Há gente de “esquerda” que fala sobre a dialética e não pensa dialeticamente. Disso, o mundo está cheio.

Falam, citam os autores que falaram sobre dialética. Aquela coisa que Madádizia: o sujeito fica muito mal naquele primeiro momento da reprodução pura. Aí, ele é um excelente memorizador, cita até as páginas.

Eu conheci recentemente um moço que dizia com maior orgulho: – “Foulcault, página 122, livro tal… e Hegel, página 43, virando para a 44, ele diz isso…”

Deste tipo de gente, dá para correr, sair correndo de perto. Eles estão quase voltando a “pura vida”, não conseguiu existir.

Mas o risco que nós, educadores e educadoras, corremos quando pensamos na reinvenção da escola é começar a reinvenção e em seguida, a reinvenção virar pura invenção. Isto é contraditório, é dialético mas façam uma forcinha para trabalhar agora, para serem existentes.

O que eu quero dizer com isto?

É que no fundo, a mulher e o homem nunca inventam, sempre reinventam.

O que eu quero dizer é que faz parte da natureza da existência que ela, depois que foi inventada, nunca mais possa permanecer inventada.

O que eu quero dizer é que faz parte da natureza da nossa experiência histórica que tudo o que fazemos enquanto vivemos no momento da inventividade embute na inventividade a necessidade da reinventividade.

Quer dizer, nada pode paralisar-se, imobilizar-se no ato da invenção.

Ao ser inventado, começa a querer ser reinventado.

Um dos grandes problemas nossos, educadores, é que somos especializados em inventar, mas não em reinventar.

E quando pensamos que estamos reinventando, estamos parados, paralisados, imobilizados, por que não fomos capazes de tratar o medo [como tu dizias, Madalena].

Partimos de que o medo é uma espécie assim de pecado ou de defeito. E se o medo é pecado ou é defeito, o que eu tenho que fazer é esconder o medo e não vivê-lo plenamente.

Por que só na medida em que eu vivo o meu medo plenamente, eu sou capaz de criar [como dizia a Madalena] a coragem.

A coragem não é uma categoria que vive fora do medo. A coragem não é uma categoria que está posta, esperando, parada, inquieta no amanhã, por mim, para que eu saia caminhando e descubra numa quarta-feira qualquer em que amanhã, a coragem me espera e eu assuma a coragem.

Não! A coragem está embutida no meu medo. Só explode comigo na medida em que eu rompo com o medo.

Eu não posso romper com o medo, se eu não o assumo. Há primeiro que assumir, para depois ir mais além…

É por isso que estão completamente equivocados os educadores que pensam, e não só pensam, mas que fazem e que afirmam, por exemplo, que a superação do senso comum, do saber da experiência feita se faz através da justaposição do saber supostamente rigoroso.

Aliás quando se diz “saber rigoroso” se faz uma imprecisão tremenda de conceito. Não existe saber rigoroso, existe saber exato – que resulta do meu rigoroso dissaber.

É isto! E eles não sabem porque decoraram.

Eu não tenho um saber rigoroso, eu tenho um saber que resultou da construção na qual eu me envolvi com rigorosidade metodológica.

É um saber que explicita certa exatidão. Isto é o que ele é epistemologicamente

Desculpem esta palavra feia, … mas até é bonita, epistemologicamente…

Então a minha primeira reflexão sobre a reinvenção da escola é esta. É o medo que eu tenho que muitos e muitas de nós fiquemos enredados na paralisia segundo a qual o recém-inventado já é velho.

Ou seja, acabou de ser inventado, se chamou de reinventado e, em seguida, não aceita mais nada.

Daí, isto resulta – tem muito que ver com uma – certa estrutura de pensamento profundamente autoritária.

É um equívoco pensar que o autoritário tem coragem. O autoritário, de modo geral, é tímido e morre de medo, só que não assume o medo.

REINVENÇÃO

O primeiro apelo que faço a nós (eu me incluo nos meus apelos) é para que ao lutar pela reinvenção da escola, reconheçamos que do corpo da reinvenção deve fazer parte a repulsa, a luta, no sentido de imobilizar a reinvenção e transforma-la em pura invenção.

Uma segunda reflexão que gostaria de fazer ao pensar e discutir esta reinvenção é a seguinte: De modo geral, a gente pensa em reinventar quando a invenção anterior começa a não responder mais aos anseios da gente, às dores da gente, às mágoas da gente, às frustrações da gente, e não só às certezas da gente.

Eu acho que uma das coisas que a gente precisa para a reinvenção da escola é ficar menos certos das certezas da gente.

Eu acho que essa é uma das condições para reinventar a vida, e com ela a existência.

Para reinventar a sociedade, e com ela, inventar a democracia brasileira e, partindo da invenção, a reinvenção da democracia, uma das condições necessárias é nós não estarmos muito certos das nossas certezas.

Talvez eu dissesse a vocês com a aparência de cínico, do ponto de vista filosófico, mas que não sou – que a única certeza que eu tenho é a de não estar certo das minhas certezas. Esta daí, eu tenho.

É a partir desta certeza de não estar certo das certezas que eu me torno certo. Não é a partir da certeza, mas da incerteza que eu me faço certo.

Ao começar a sonhar com esta necessária reinvenção da escola, a gente se engaja nesta busca por que alguma coisa ou muita coisa da escola inventada não “bate mais”. Eu acho que o exercício fundamental para quem quer reinventar, antes de anunciar as positividades da sua reinvenção, é fazer a crítica das negatividades da já inventada.

Eu quero dizer o seguinte: eu preciso perguntar em torno do que na já inventada escola que está aí, o que ela tem de ostensivamente anti-reinvenção? Em que ela se constitui um obstáculo ao processo em que ela não esteja imobilizada?

Depois é que eu, não em termos de pensamento justaposto, mas em termos de um pensamento dinâmico, contraditório e processual, eu vou descobrindo as coisas de que a reinvenção me fala e as coisas de que a reinvenção da escola exige de nós.

PROCESSO HISTÓRICO

Mas exatamente porque não há escola inventada, nem há reinvenção da inventada que se dê só nas cabeças das gentes por que a invenção e a reinvenção são processos históricos, que se dão portanto na história. E por que se dão na história, têm historicidade.

Vamos explicar o que é este conceito. A historicidade é exatamente a qualidade que tem o ser histórico de não ser, por que o seu “ser” depende de que ele esteja sendo.

Por isso, é que eu falava na reinvenção que não fosse, ao nascer, já metida numa camisa de forças, como sendo a última palavra. Por que não há última palavra na história. É claro, não é possível última palavra na história, a não ser que esteja para se acabar mesmo.

Mas eu não acredito, inclusive, nesta história que andam boatando por aí de que a história se acabou e que estamos agora noutra história em que não há mais classes sociais. Isto é mentirinha…

De repente, meia dúzia de gente no mundo decretam que não há mais classe social e todo mundo tem que acreditar.

– Mas não dá! Até por que, inclusive, as fronteiras da história não são assim: “Até quarta-feira passada tinha, e de quinta-feira para cá não tem mais!”  Isto não existe!

O que a história, ou pedaço da história, está exigindo de nós, hoje, com relação às classes sociais é outra coisa. Esta exigindo de nós em certas geografias e em certas histórias que analisemos com mais cuidado a concretude das classes sociais, mas não que afirmemos que elas já se acabaram.

Isto é tão ahistórico quanto ahistórico era dizer-se, há 6 ou 8 anos atrás, que a luta de classes era “o” motor da história. Era e continua sendo “um” dos motores da história, mas não é o único motor da história.

Pois bem, eu dizia que para que eu me meta num processo amplo de reinvenção, eu preciso saber mais ou menos das coisas que estão obstucalizando que a escola inventada entre no processo de ser reinventada e descubro (percebo ou sublinho) imediatamente que esta escola inventada foi inventada e continua sem querer ser reinventada e continua porém dentro da história, e não fora da história.

E que a minha reinvenção é histórica também.

Então, o que a gente vai ter que fazer com a escola que está aí é algo que tem que se dá dentro da história da gente estando esta história da gente em relação contraditória com a história de outras gentes dentro deste mundão que está aí.

Não é possível pensar a reinvenção da escola sem ter em frente a nós as negatividades daquilo que precisa de ser reinventado exatamente por que está negativo demais, sem, por outro lado, ter uma idéia em torno do que é que esta reinvenção representa como utopia, como utopia possível, como utopia viável,

com o sonho que é um dos motores da história e portanto, também sem começar a caracterizar. Ao perfilar esta utopia é preciso, então, que caracterizemos alguns dos pontos da reinvenção.

ELEMENTOS DA REINVENÇÃO

É preciso, então, que caracterizemos alguns dos pontos da reinvenção. E é interessante que quando fazemos este exercício, descobrimos que muitos dos pontos da reinvenção são velhos anúncios que nos acompanham há muitos anos.

Por exemplo, um dos pontos que eu não digo seja o primeiro ou o segundo ou o terceiro, mas um dos fundamentais da reinvenção da escola é a liberdade de que Madalena e Esther P. Grossi falaram muito.

Por que sem a liberdade e sobretudo, sem a busca pela liberdade, sem o jogo da liberdade, sem a invenção dela, sem a reinvenção dela, não é possível conhecer.

Conhecer nos termos nossos, de homem e de mulher. Por que as jabuticabeiras conhecem, sabem. Gil a Anka sabem mais do que as jabuticabeiras. Mas as jabuticabeiras, Gil e Anka não sabem o que nós sabemos. E sobretudo não podem saber o que nós sabemos.

Nós dispomos de uma linguagem que, inclusive, não apenas expressa conhecimento, mas que é, em si, conhecimento.

Nós inventamos uma coisa que ao brotar de nós já é conhecimento e não transferência de conhecimento. Por isso também é que a linguagem é anúncio de mundo diferente.

Esta, para mim, é uma das dimensões mais gostosas da capacidade que nós temos de falar. A linguagem da gente pode antecipar o amanhã.

A questão que se coloca a nós é saber se, enquanto seres sociais, históricos, culturais, cognoscentes à procura do objeto para fazê-lo, refazê-lo e transforma-lo,  se somos capazes de acompanhar a proposta sonhadora da linguagem que nos antecipa o mundo que nós queremos.

E quando eu digo que é preciso saber se somos capazes de estar a altura do anúncio da linguagem, eu quero simplesmente dizer que não podemos deixar que a linguagem ou o discurso de possibilidade – como diz Giron, um pensador norte-americano – que o discurso se perca por falta de suporte da nossa práxis.

Quer dizer, eu tenho que dá o suporte da minha práxis ao meu discurso anunciador.

Mas ele é, em si, o discurso que antecipa o que vem.

Eu dizia, então, que uma das qualidades fundamentais da escola de que precisamos é o gosto irrefreado pela liberdade. Mas de uma liberdade que seja vivida no risco de perder-se.

O que eu quero dizer com isto?

Eu preciso viver a liberdade. Eu, enquanto sujeito histórico, preciso viver a liberdade que eu busco criar e recriar, assumindo porém os riscos que a liberdade pões a mim. Que riscos são estes?

O risco de perdê-la. E de perdê-la, como?

De perdê-la por que ela se degrade em licensiosidade. Este seria um primeiro risco. O risco em que a liberdade, sem limites, não tem como continuar liberdade e por isso, então, se transforma em licensiosidade, em espontaneísmo.

Qual é o outro risco?

É o risco que a liberdade tem de se perder, também. Mas de se perder, agora, amofinada, tremendo de frio e de medo de uma autoridade que também ao arriscar-se, se perdeu e se transformou em autoritarismo.

O que nós temos não é de deixar de querer a liberdade, por que há estes dois grandes riscos. Mas precisamente por que é arriscado ser livre, que temos de ser livres.

A invenção da liberdade nunca poderia ter sido gratuita. Quer dizer, a liberdade não se ganha de presente de aniversário, nem de fim de ano. A liberdade se constrói.

E este é um grande problema que este país da gente vive. E vive desde o momento em que ele foi inventado por que uma das coisas trágicas da sociedade brasileira é que os grupos dominantes que inventaram esta sociedade, eles inventaram a sociedade sem querer reinventa-la.

A sociedade brasileira nasceu inventada, recusando a reinventar-se.

Não ela totalmente, as massas populares deste país vão um dia mudar este país…

Eu dizia que a liberdade, o clima, o gosto, a paixão da liberdade, sem a qual as outras paixões não podem funcionar:

a paixão de conhecer (como diz Madá),

a paixão de saber,

a paixão de perguntar sem a qual

o conhecimento não surge, não se cria.

Estas paixões estão diretamente ligadas a paixão da liberdade.

O que é preciso é que não se tenha da liberdade jamais a sensação de quem se intoxicou de liberdade ou de quem está absolutamente carente de liberdade. Por outro lado, também, ninguém briga pela liberdade por que é livre.

Briga pela liberdade exatamente por que precisa de liberdade.

A necessidade de liberdade é fundamental à criação da liberdade. É por isso que também não há limites, no sentido de ponto final. Ninguém estabelece um ponto final e diz “chegado aqui, a liberdade está saturada”. Por que no momento em que um indivíduo ou um grupo social alcança um nível extraordinário de liberdade, precisamente por que a invenção da liberdade incute a reinvenção dela, em determinado momento o que parecia ser a saturação da liberdade começa a ser um problema em favor de novos níveis de liberdade.

A reinvenção da escola teria que partir

da necessidade da permanente, processual

reinvenção da liberdade

que implica a

reinvenção do saber,

reinvenção da existência,

reinvenção da capacidade de amar,

reinvenção da capacidade de ter raiva,

reinvenção de estar e de não estar,

de partir e de ficar…

A superação

definitiva

do imobilismo.

– Construtivista. Madalena Freire

transcrição livre do Seminário feita por Paulo Henrique Colonese, 1992.

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