Lidando com a Cólera no século 19

Capa: A cholera patient experimenting with remedies. Gravura colorida. Crédito R. I. Cruikshank, 1832?. In Wellcome Collection. Licença CC BY 4.0.

Texto adaptado dos Recursos Educativos dos The National Archives.

Tatiana Azevedo Gomes. Estagiária Espaço Ciência Viva, 2021. Orientação Paulo Henrique Colonese.

Como a sociedade e as autoridades reagiram à Cólera no século 19?

A  Cólera na Grã-Bretanha Vitoriana do século 19 provocou um grande medo da doença e do desconhecido, provocando atitudes as mais diversas no modo como a Sociedade e o Setor de Saúde Pública lidaram com a doença.

A doença se originou na Ásia e os médicos europeus desconheciam a sua causa e não estavam familiarizados com o seu tratamento.

A Cólera alcançou a Europa em uma série de “surtos” a partir de 1830 e a Grã-Bretanha experimentou sua primeira epidemia em 1832, quando 52.000 pessoas morreram.

Um segundo surto foi seguido em 1848-9  e  causou a morte de 53.293 pessoas.

Esse número assustador de mortos e  a pressão da National Health of Towns Association (Associação Nacional de Saúde das Cidades), criada em 1848, fez com que o  governo introduzisse uma nova Lei. A Associação era formada por um grupo muito diversificado, incluindo políticos, clérigos, médicos, ricos comerciantes, um engenheiro e arquiteto. E, obviamente, a própria associação divergia em muitos aspectos.

A Lei de Saúde Pública de 1848

A Public Health Act (Lei de Saúde Pública) criou o General Board of Health (Conselho Geral de Saúde) em Londres para  aconselhar sobre a prevenção de doenças e criar conselhos locais de saúde para analisar  as condições sanitárias  em todo  o  país  e nomear oficiais médicos.  No entanto, houve pouca ou nenhuma cooperação entre as autoridades e a maioria da população pobre urbana, sem acesso a nenhum serviço de saúde ou sanitário, desconfiavam muito da profissão médica.

O Conselho Geral de Saúde não tinha poder para forçar os conselhos locais a agir. Propunha várias medidas, como a abolição do imposto sobre a janela (com o fundamento de que a luz e o ar eram produtos sanitários), mas isso era inaceitável para o Tesouro e foi abandonado. Um conflito onde a Economia do Estado ignorou a Saúde Pública.

Outra consequência política foi ignorar totalmente o principal evento de Saúde no Reino Unido durante a década de 1840, a fome e epidemias na Irlanda e na Escócia, que foram ignoradas pela associação, exceto em raras ocasiões em que seus publicitários procuraram culpar tais problemas ao mau esgoto.

No entanto, a nova lei  marcou o início  de uma responsabilidade do governo pela saúde pública, apesar da  resistência  de muitos  contribuintes. A Lei de Saúde Pública de 1875 ajudou depois a eliminar este problema, pois as autoridades locais substituíram os conselhos locais, que se tornaram responsáveis  pelo 

fornecimento de água potável, drenagem adequada e sistemas de esgoto.

A opinião médica  da época era de que a cólera era causada por um ar ruim ou ‘miasma’ dos montes de esterco ou esgotos, da umidade e sujeira.

Outros  médicos argumentavam que era causada pelo contato com pessoas que tiveram a doença por causa da superlotação dos centros urbanos. E os tratamentos que propuseram refletiam essas ideias. Por exemplo,

hospitais de isolamento foram construídos, casas eram lavadas com cal e as ruas eram limpas. 

A doença  parecia se espalhar mais rapidamente entre os pobres e eles eram frequentemente instruídos

  • a evitar o álcool e comer moderadamente.
  • a limpar o corpo (esvaziar seus intestinos) para parar o vômito persistente e diarreia que foram os principais sintomas da  doença.
  • a serem sangrados com sanguessugas, como tratamento.
  • ao uso de “cintas” de flanela ou meias de lã para se aquecer.
  • ao uso de medicamentos a base de cânfora e mercúrio.

No geral, esses tratamentos apenas enfraqueceram os corpos das pessoas que sofreram de cólera e os deixavam ainda mais desidratados, acelerando a morte em muitos casos.  

Deus vai nos salvar

Havia também petições de todo o país solicitando, com a permissão da Rainha, um National Humiliation’s Day (Dia da Humilhação Nacional) para jejum e oração, a fim de pedir a Deus que livrasse o país da cólera.    

Vamos explodir a Cólera

Havia uma série de outras “curas” para a doença, por exemplo, um cirurgião de Chudleigh, em Devon, sugeriu que a pólvora  deveria ser usada  para  acabar com o ‘miasma’ que supostamente causou a cólera.

Vamos beber Conhaque?

Outro senhor escreveu sobre a importância de beber conhaque em casos de cólera. Ele sugeriu que o governo  deveria  disponibilizar a bebida para as ‘classes inferiores’, isento de impostos ‘até que a cólera tenha cessado’.

Desafio CiênciArte
A cholera patient experimenting with remedies. Coloured etching by R.I. Cruikshank, [1832?].. Credit: Wellcome Collection. Attribution 4.0 International (CC BY 4.0)
  1. Como o artista sugere o medo que o paciente tem da doença? 
  2. Quais tratamentos de cólera podem ser vistos neste cartoon? 
  3. Você sabe por que eles foram usados? 
  4. O que isso revela sobre a compreensão científica das causas da doença? 
  5. Descreva o banquinho de fome, você pode explicar por que ele é mostrado no desenho animado? 
  6. Quais são os pontos que o artista aponta neste cartoon, na imagem e no título sobre:
    • Tratamentos para Cólera
    • O Conselho de Saúde

Descrição:

A obra apresenta um indivíduo com aspecto abatido e emagrecido, provavelmente de classe social baixa de acordo com suas vestimentas rasgadas e retalhadas. Na mesa ao seu lado, “Board of Health” significa Conselho de Saúde, instituição criada para aconselhar sobre a prevenção da cólera à população.

Mercúrio limpa tudo e o Ópio alivia

Em cima da mesa encontra-se um pote de remédios escrito “Blue Pills (Pílulas Azuis)” também conhecido como Blue Mass ou Pílula Hydrargyri. Esse medicamento, à base de Ópio e de Mercúrio, era utilizado na época para o tratamento da cólera e outras doenças gastrointestinais. Por ser tóxico, causava mortes por envenenamento ao longo do seu uso.

Jarra francesa de remédios para pílulas de mercúrio, Itália, 1731-1770. Coleção Science Museum Group. Fotografia. Licença dEDICAÇÃO AO Domínio Público. CC0-BY-1.0.

Vamos vomitar que melhora

No mesmo lugar, um frasco apontado como “Emetic” contendo uma faixa escrito “The dose to be repeated” faz referência a uma substância capaz de provocar vômito e náuseas para “limpar o organismo”. Uma prática comum e antiga da medicina europeia.

Um médico esperando seu paciente vomitar após administrar um emético.  Aquarela de G. M. Woodward, 1800. In Wellcome Collections. Licença CC-BY 4.0.

O banco no qual o enfermo se encontra sentado diz respeito à Starvation (Fome e Inanição), talvez fazendo referência à miséria da população pobre e também ao dia em que era feito o jejum, petinências e orações a Deus pedindo o fim da cólera.

A aparência do indivíduo pode retratar angústia e ao mesmo tempo desespero por saber que nenhum daqueles tratamentos estavam funcionando. Pelo contrário, estavam piorando a situação dos doentes. Logo, o medo da morte mostrava-se nas feições de todos.

A Mesa BOARD OF HEALTH representa o Conselho de Saúde, fazendo referências às orientações governamentais para o combate à epidemia.

E abaixo da mesa, temos uma Coruja (símbolo de sabedoria) com uma cabeça de Crânio (símbolo de Morte). A Coruja traz no peito a antiga frase poética: “Fee-fi-fo-fum“.

É a primeira linha de uma quadra histórica famosa por seu uso no clássico conto de fadas inglês Jack and the Beanstalk (João e o Pé de Feijão). O poema, conforme apresentado na versão de Joseph Jacobs em 1890, é o seguinte,

“Fee-fi-fo-fum,
sinto o cheiro de sangue de um inglês,
Esteja vivo ou morto,

moerei seus ossos para fazer meu pão.”

A Medicina enfrenta a Terceira Onda

No entanto , o maior avanço na compreensão da causa da doença veio com a terceira  epidemia de cólera  de 1854. O médico John Snow, tendo visto surtos anteriores da doença, estava convencido de que a Cólera era causada ​​por água contaminada por esgoto.

Ele havia escrito um artigo médico sobre essa teoria em On The Mode of Communication of
Cholera
(Sobre o modo de comunicação da cólera) em 1849.

Do Registro e Mapeamento à Descoberta da Fonte de Contaminação

Cinco anos depois, em 1854, ele provou isso mapeando casos da doença até a localização de uma bomba d’água específica em Broad Street, Soho.

O surto matou 127 pessoas em três dias e 616 em um mês. Por sugestão dele, a bomba d’água da Broad Street foi  desligada e a epidemia diminuiu.   

Snow descobriu que casas e bombas públicas abastecidas por companhias de água que pegavam água de onde muitos dos esgotos de Londres desaguavam no rio Tâmisa, apresentavam taxas de mortalidade muito mais elevadas por cólera . E pessoas cuja água era obtida mais acima da Vila Ditton no Rio Tâmisa, (apelidado de Great Stink River, o Rio Fedorento, em 1858) não adoeceram.

O salteador silencioso  : fileiras de morte no Tamisa, ceifando a vida de vítimas que não pagaram para limpar o rio, durante o Grande Fedor. Revista Punch. Cartoon da Punch Magazine, Volume 35, página 137; 10/7/1858. In Wikipedia. Licença de Domínio Público.

O Dr. John Snow foi um pioneiro em Epidemiologia, um ramo da medicina que lida com a incidência, distribuição e possível controle de doenças.  

A Grã-Bretanha enfrentou uma epidemia final de cólera em 1866 no leste de Londres. Poucas pessoas morreram, possivelmente porque houve  mais  aceitação da sugestão do Dr. John Snow sobre ‘os organismos vivos’ que contaminavam água potável. Durante esta epidemia, as  pessoas foram  aconselhadas  a beber água fervida para reduzir o risco de infecção.

No entanto , não foi até  1883 um  médico alemão, Robert  Koch , com base no importante trabalho anterior de Louis Pasteur, identificou as causas bacterianas de  cólera (Vibrio cholera) com  um microscópio e teorias sobre ‘miasma’ foram  substituídas no pensamento médico pela ‘teoria dos germes’. Isso provou a evidência  crucial de que um  melhor  saneamento e melhor abastecimento de água eram  essenciais para prevenir futuras epidemias de cólera. 

Bactérias da Cólera (Vibrio Cholerae. Crédito: . In Wikimedia Commons. Licença Dedicação ao Domínio Público.

XIX e XXI: Séculos diferentes, mas Medos semelhantes

Qualquer semelhança não é mera coincidência: a crença em métodos alternativos e em “curas” não comprovadas cientificamente não pararam no século XIX, mesmo com os avanços da compreensão científica das causas da doença.

A pandemia do Covid-19 deixou isso ainda mais evidente como grande parte da população reproduzindo essas atitudes , medos e ações dos séculos passados.

Como na epidemia de cólera,

  • Recomendações inapropriadas também estão sendo espalhadas atualmente.
  • Muitos tratamentos sem base científica têm sido sugeridos e cogitados, desde o uso de medicamentos ineficazes para Covid-19 até a ingestão de álcool ou produtos de limpeza.

Infelizmente, muitas pessoas seguem essas recomendações, o que gera graves consequências à saúde, provocando também o aumento de óbitos, como relatado nos casos de Covid recentes em Manaus.

Fake News Criminosas

E para piorar a situação, o alastramento de notícias falsas, principalmente no campo da Saúde, implica de forma muito negativa no combate real às doenças.

Estudar e conhecer os processos e o rigor que os procedimentos científicos desenvolveram na Ciência, em especial no campo da produção de vacinas – infelizmente tão atacados pelo medo e pela desinformação atuais – é o melhor caminho para a Sociedade enfrentar as pandemias.

Divulgar e seguir as recomendações médicas e sanitárias desenvolvidas cuidadosamente nesse processo são maneiras de lutar contra as mentiras espalhadas e combater a desinformação. Dessa forma, contribuiremos não só na batalha contra o coronavírus, mas também contra diversas outras doenças que nos afetam.

Referências

  1. The National Archives. Coping with cholera. Education sessions and resources. s/autor. Disponível em: https://www.nationalarchives.gov.uk/education/resources/coping-with-cholera/. Acesso em: 23 mar. 2021.
  2. PARK, M. P.; PARK, R. H. R. Fear and humour in the art of cholera. Journal of the Royal Society of Medicine, v. 103, n. 12, p. 481-483, 2010. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2996527/. Acesso em: 07 abr. 2021.

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