Capa: Pau-Brasil (flores, Paubrasilia echinata). (c) Paula Romano. Acervo iNaturalist. Licença CC-BY-NC-4.0.
Manifesto PAU-BRASIL
Oswald de Andrade. Correio da Manhã, 18 de março de 1924.
A poesia existe nos fatos.
Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela,
sob o azul cabralino, são fatos estéticos.
O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau–Brasil.
Wagner submerge ante os cordões de Botafogo.
Bárbaro e nosso.
A formação étnica rica.
Riqueza vegetal. O minério.
A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.
Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil.
O lado doutor, o lado citações,
o lado autores conhecidos.
Comovente.
Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia.
Tudo revertendo em riqueza.
A riqueza dos bailes e das frases feitas.
Negras de Jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil.
O lado doutor.
Fatalidade do primeiro branco aportado
e dominando politicamente as selvas selvagens.
O bacharel.
Não podemos deixar de ser doutos. Doutores.
País de dores anônimas, de doutores anônimos.
O Império foi assim.
Eruditamos tudo.
Esquecemos o gavião de penacho.
A nunca exportação de poesia.
A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria.
Nas lianas da saudade universitária.
Mas houve um estouro nos aprendimentos.
Os homens que sabiam tudo
se deformaram como borrachas sopradas.
Rebentaram.
A volta à especialização.
Filósofos fazendo filosofia, críticos, critica, donas de casa tratando de cozinha.
A Poesia para os poetas.
Alegria dos que não sabem e descobrem.
Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo :
o teatro de tese e a luta no palco entre morais e imorais.
A tese deve ser decidida em guerra de sociólogos, de homens de lei,
gordos e dourados como Corpus Juris.
Ágil o teatro, filho do saltimbanco.
Agil e ilógico.
Ágil o romance, nascido da invenção.
Ágil a poesia.
A poesia Pau-Brasil.
Ágil e cândida. Como uma criança.
Uma sugestão de Blaise Cendrars :
– Tendes as locomotivas cheias, ides partir.
Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais.
O menor descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso destino.
Contra o gabinetismo, a prática culta da vida.
Engenheiros em vez de jurisconsultos,
perdidos como chineses na genealogia das ideias.
A língua sem arcaísmos, sem erudição.
Natural e neológica.
A contribuição milionária de todos os erros.
Como falamos. Como somos.
Não há luta na terra de vocações acadêmicas.
Há só fardas.
Os futuristas e os outros.
Uma única luta – a luta pelo caminho.
Dividamos:
Poesia de importação.
E a Poesia Pau-Brasil, de exportação.
Houve um fenômeno de democratização estética
nas cinco partes sábias do mundo.
Instituíra-se o naturalismo. Copiar.
Quadros de carneiros que não fosse lã mesmo, não prestava.
A interpretação no dicionário oral
das Escolas de Belas Artes queria dizer reproduzir igualzinho…
Veio a pirogravura.
As meninas de todos os lares ficaram artistas.
Apareceu a máquina fotográfica.
E com todas as prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da misteriosa genialidade de olho virado – o artista fotógrafo.
Na música, o piano invadiu as saletas nuas,
de folhinha na parede.
Todas as meninas ficaram pianistas.
Surgiu o piano de manivela, o piano de patas. A pleyela.
E a ironia eslava compôs para a pleyela. Stravinski.
A estatuária andou atrás.
As procissões saíram novinhas das fábricas.
Só não se inventou uma máquina de fazer versos
– já havia o poeta parnasiano.
Ora, a revolução indicou apenas que a arte voltava para as elites.
E as elites começaram desmanchando.
Duas fases:
1º) a deformação através do impressionismo, a fragmentação, o caos voluntário.
De Cézanne e Malarmé, Rodin e Debussy até agora.
2º) o lirismo, a apresentação no templo, os materiais, a inocência construtiva.
O Brasil profiteur.
O Brasil doutor.
E a coincidência da primeira construção brasileira
no movimento de reconstrução geral.
Poesia Pau-Brasil.
Como a época é miraculosa,
as leis nasceram do próprio rotamento dinâmico
dos fatores destrutivos.
A síntese
O equilíbrio
O acabamento de carrosserie
A invenção
A surpresa
Uma nova perspectiva
Uma nova escala.
Qualquer esforço natural
nesse sentido será bom.
Poesia Pau-Brasil
O trabalho
contra o detalhe naturalista – pela síntese;
contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico;
contra a cópia, pela invenção e pela surpresa.
Uma nova perspectiva.
A outra, a de Paolo Ucello,
criou o naturalismo de apogeu.
Era uma ilusão ética.
Os objetos distantes não diminuíam.
Era uma lei de aparência.
Ora, o momento é de reação à aparência.
Reação à cópia.
Substituir a perspectiva visual e naturalista
por uma Perspectiva de outra ordem:
sentimental, intelectual, irônica, ingênua.
Uma nova Escala:
A outra, a de um mundo proporcionado
e catalogado com letras nos livros, crianças nos colos.
O redame produzindo letras maiores que torres.
E as novas formas da indústria, da viação, da aviação.
Postes. Gasômetros Rails.
Laboratórios e oficinas técnicas.
Vozes e tics de fios e ondas e fulgurações.
Estrelas familiarizadas com negativos fotográficos.
O correspondente da surpresa física em arte.
A reação contra o assunto invasor,
diverso da finalidade.
A peça de tese era um arranjo monstruoso.
O romance de ideias, uma mistura.
O quadro histórico, uma aberração.
A escultura eloquente, um pavor sem sentido.
Nossa época anuncia a volta ao sentido puro.
Um quadro são linhas e cores.
A estatuária são volumes sob a luz.
A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar domingueira,
com passarinhos cantando na mata resumida das gaiolas,
um sujeito magro compondo uma valsa para flauta
e a Maricota lendo o jornal.
No jornal anda todo o presente.
Nenhuma fórmula
para a contemporânea expressão do mundo.
Ver com olhos livres.
Temos a base dupla e presente
– a Floresta e a escola.
A raça crédula e dualista
e a geometria, a álgebra e a química
logo depois da mamadeira e do chá de erva-doce.
Um misto de “dorme nenê que o bicho vem pegá” e de equações.
Uma visão que bata
nos cilindros dos moinhos,
nas turbinas elétricas;
nas usinas produtoras,
nas questões cambiais,
sem perder de vista o Museu Nacional.
Pau–Brasil.
Obuses de elevadores,
cubos de arranha-céus
e a sábia preguiça solar.
A reza.
O Carnaval.
A energia íntima.
O sabiá.
A hospitalidade um pouco sensual, amorosa.
A saudade dos pajés e os campos de aviação militar.
Pau-Brasil.
O trabalho da geração futurista foi ciclópico.
Acertar o relógio império da literatura nacional.
Realizada essa etapa, o problema é outro.
Ser regional e puro em sua época.
O estado de inocência
substituindo o estada de graça
que pode ser uma atitude do espírito.
O contrapeso da originalidade nativa
para inutilizar a adesão acadêmica.
A reação contra todas as indigestões de sabedoria.
O melhor de nossa tradição lírica.
O melhor de nossa demonstração moderna.
Apenas brasileiros de nossa época.
O necessário de química,
de mecânica,
de economia e
de balística.
Tudo digerido.
Sem meeting cultural.
Práticos. Experimentais. Poetas.
Sem reminiscências livrescas.
Sem comparações de apoio.
Sem pesquisa etimológica.
Sem ontologia.
Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos.
Leitores de jornais.
Pau-Brasil.
A floresta e a escola.
O Museu Nacional.
A cozinha, o minério e a dança.
A vegetação.
Pau-Brasil.”