Lição sobre a água
Este líquido é água.
Quando pura
é inodora, insípida e incolor.
Reduzida a vapor,
sob tensão e a alta temperatura,
move os êmbolos das máquinas que, por isso,
se denominam máquinas de vapor.
É um bom dissolvente.
Embora com excepções mas de um modo geral,
dissolve tudo bem, bases e sais.
Congela a zero graus centesimais
e ferve a 100, quando à pressão normal.
Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão,
sob um luar gomoso e branco de camélia,
apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão.
in Antonio Gedeão, Obra Completa, 2ª edição, Relógio d’Água, Lisboa 2007.
Comentários postados no blog Vício de Poesia:
Só conseguimos gostar do que conhecemos. À entrada da adolescência, tinha eu doze anos, um austero professor fez-me descobrir o sortilégio das experiências de química, a tal ponto que, qual pesquisador da pedra filosofal, Instalei no terraço de casa um pequeno laboratório, com o beneplácito de meu pai, que tinha uma paciência infinita para as minhas fantasias, e dei início à minha actividade experimental. Como era de esperar, fruto da ignorância, a coisa correu mal, e depois de um desastre sem consequências graves, fui levado a desmontar o laboratório e esquecer as experimentações domésticas. Mas o entusiasmo ficou cá. De entre as variadas coisas que ensinei, o que recordo com uma ternura nostálgica são umas aulas de laboratório de química, e o prazer de fazer descobrir aquele mundo mágico a sucessivas camadas de adolescentes.
O poema, no seu propósito didáctico, assume um tradição que remonta à medicina árabe medieval, na qual os tratados médicos (os únicos que o mundo medieval cristão conheceu) eram escritos em verso para facilitar a sua assimilação. O mas notável será o Poema da Medicina, de Avicena.
Ainda que o Químico, o Prof. Rómulo de Carvalho, que escreveu poesia sob o pseudónimo de António Gedeão, tenha esquecido a biologia e o papel da água como fonte da vida, na estrofe final do poema associa toda esta ciência à mente humana e ao que ela pode ter de mais dilacerante: a loucura e o suicídio por transtornos emocionais entre família, dever e desejo. Evoca aí o poeta a morte de Ofélia, paixão (?) de Hamlet, na peça homóloga de Shakespeare.
A cena descrita na última estrofe do poema foi pretexto para uma famosa pintura de John Everett Millais (1829-1896), com cuja imagem abre o artigo. A pintura original pertence à Tate Britain.