Capa: Leão-Sul-Africano (Panthera leo ssp. melanochaita). © Callum Evans, 2018. Acervo iNaturalist. Licença CC-BY-NC-4.0.
Coleção AfroCéus: Primeira temporada
Autor: Paulo Henrique Colonese, Licença CC-BY-NC-4.0.
Naju: Vovó, já conhecemos os belos antílopes celestes, que estrelas vamos conhecer essa noite?
Nami: Estamos no início de maio e o Sol acabou de se por, vamos ver o que temos mais essa noite. Olhe ali na direção do Sol nascente. Consegue ver duas estrelas brilhantes entre o Leste e o Sul?
Naju: Acho que sim, são aquelas perto do horizonte, uma mais alta e outra mais baixa?
Nami: Essas mesmas. Elas tem uma importante história de nossos povo para contar .
Naju: Adoro as nossas histórias. Quando crescer quero ser sábia como a senhora. Eu quero conhecer todas as estrelas e suas belas histórias para poder contar aos outros. Quem são elas?
Nami: Elas são os olhos brilhantes da Grande Fera Celeste, um grande caçador e protetor do seu território. Seus olhos brilham como os olhos de animais da noite quando olham uma fogueira.
Naju: São os olhos de Mura, o Leão?
Nami: Sim, os Olhos de Mura. Voce já ouviu falar dele?
Naju: Sim, os caçadores falam muito dele. Eles dizem que Maru é o rei das savanas, não apenas por sua força, mas também por sua coragem e sabedoria. Mas os parentes do vovo o chamam de Tsau, o Leão que virou estrela.
Nami: Sim, Maru tinha uma juba dourada que brilhava como o Sol e olhos que podiam ver a verdade em qualquer coração. Nas nossas pinturas nas rochas, ele está sempre desenhado com outros animais importantes, como os antílopes e até elefantes, Nossos ancestrais dizem que os leões possuem espíritos poderosos que podem influenciar o mundo natural. Alguns parentes o consideram os guardiões da terra e dos nossos povos.
Naju: O vovo contou uma vez que o leão tinha asas e podia voar, sendo o maior caçador de todos. Ele guardava os ossos de suas presas em seu covil e deixava corvos brancos para vigiá-los. Mas um dia, um sapo entrou no covil e quebrou os ossos, dizendo que ninguém tinha o direito de matar todos os animais dessa forma. Quando o leão voltou e descobriu o que havia acontecido, ele perdeu a capacidade de voar.
Nami: Sim, essa história nos diz que devemos ser respeitosos com os animais que caçamos. Eles são o alimento de nosso corpo, merecem respeito.
Naju: Mas qual é a história dos olhos? Por que eles estão no céu?
Nami: Os ancestrais dizem que Maru, aqui na Terra, era o guardião da noite. Ele tinha olhos brilhantes que iluminavam a escuridão e protegiam os animais da savana. Quando Maru morreu, os deuses decidiram honrá-lo colocando seus olhos no céu, para que brilhassem para sempre. Nosso povo acredita que os seus olhos ainda vigiam a terra, garantindo que a noite seja segura para todos os seres vivos.
Essa história ensina sobre a importância da vigilância e da proteção e para lembrar que mesmo após a morte, os espíritos dos guardiões continuam a cuidar do mundo. Para os Khoisan, as estrelas não são apenas pontos de luz no céu, mas também espíritos ancestrais que guiam e protegem. A constelação dos Olhos do Leão é um símbolo de força, proteção e continuidade, refletindo a profunda conexão dos Khoisan com a natureza e o cosmos.
Naju: Mas os leões não são perigosos? Eles são fortes e conseguem caçar até grandes animais.
Nami: Sim, entre os felinos da África, eles são os maiores em tamanho. E seus rugidos podem ser ouvidos a oito quilômetros de distância.
Naju: Sim, vovo disse que já escutou o rugido deles. Deve ser assustador. E como os leões caçam?
Nami: Os leões vivem em bandos, embora alguns fiquem solitários. Os bandos podem ser pequenos de apenas dois leões ou serem grandes, incluindo até três ou quatro machos, uma dúzia de fêmeas e seus filhotes. Todas as leoas de um bando são aparentadas, e os filhotes fêmeas geralmente ficam com o bando quando crescem e os machos jovens saem para formar seus próprios bandos. Os machos defendem o território do bando, marcando a área com urina, rugindo para alertar intrusos e afugentar animais que invadem seu território.
Naju: E as femeas, elas caçam?
Nami: Sim, elas são as principais caçadoras e podem liderar a caçada, mas os machos também caçam, diferente do que contam por aí. Elas trabalham juntas para caçar antílopes, zebras, gnus e outros animais grandes de pastagens abertas, pois eles são mais rápidos que os leões, e a caça em grupo compensa.
Naju: E quando os filhotes começam a caçar?
Nami: Os leões jovens só ajudam a caçar quando fazem cerca de um ano de idade.
Naju: E eles caçam sempre em bando?
Nami: Os leões podem caçar sozinhos pois não podem desperdiçar uma comida que apareça. E também roubam caças de hienas, chacais e cães selvagens. Eles aproveitam sempre que uma boa caça aparece no caminho.
Os leões são grandes comedores, eles podem comer até 40 quilos de carne em uma única refeição, quase um quarto do peso do leão adulto.
Naju: Quando os leões caçam?
Nami: Os leões caçam quase sempre à noite, pois seus olhos brilhantes enxergam bem à escuridão, uma grande vantagem sobre suas caças. E eles também caçam durante tempestades. O barulho, a chuva e o vento tornam mais difícil para a caça ver, ouvir ou sentir o cheiro dos caçadores.
Naju: Todos os machos tem juba?
Nami: A pelagem de um leão adulto é amarelo-dourada e alguns podem ter regiões com pelos escuros. Quando eles são jovens têm algumas manchas claras que desaparecem com a idade. A maioria das espécies de leões machos tem jubas, suas impressionantes franjas de cabelo longo que circunda suas cabeças, mas existem alguns leões machos que não tem juba nenhuma.
Naju: Vovó, a estação da seca está se aproximando. Como os leões sobrevivem nessa estação?
Nami: Eles podem viver em áreas muito secas. Suas línguas têm raspadores pontiagudos, chamados papilas, que são usados para raspar a carne dos ossos. E eles obtêm a maior parte da água de suas presas e até bebem de plantas como o melão Tsamma.
Naju: Eles também gostam do melão Tsamma? Incrível, isso.
Naju: Mas eles são perigosos para nosso povo?
Nami: Devemos sempre ter cuidado, com leões nunca se sabe. Quando nos mudamos para uma nova área, precisamos conhecer as famílias de leões do local. Conhecer os machos dominantes, os desafiantes, e as fêmeas líderes, precisamos conhecer cada leão e cada leoa. Alguns machos são agressivos, outros brincalhões e tem aqueles que se irritam facilmente. Desse modo, aprenderemos a conviver com eles.
Nami: Os outros caçadores, como as velozes chitas (guepardo – Acinonyx jubatus) e os leopardos (Panthera pardus pardus) não são tão perigosos quanto os leões.
Nami: As chitas são muito pequenas para caçar pessoas com sucesso, e os leopardos são fáceis de desencorajar. Minha mãe, sua avó, contou que afugentou um leopardo com um pedaço de pau, impedindo-o de atacar seu avo adormecido.
Nami: Ela me disse que nossos ancestrais fizeram um pacto de respeito com os leões. Eles dizem que os homens e os leões caçavam no mesmo território, e um dia, os melhores caçadores se aproximaram do leão dominante adormecido e começaram a gritar e berrar de forma assustadora, além de jogar paus em sua direção, O leão acordou e levou o maior susto de sua vida e correu, disparado como o vento. Mas, em algum momento, algo fez o leão macho entender que ele e seu bando nunca devem caçar as pessoas que o atacaram, mas não o mataram. Você não mexe conosco e nós não mexemos com você, era o entendimento. Eles fizeram um pacto de amizade e de respeito.
Naju: É por isso que nosso povo e os leões caçam os antílopes, mas com os caçadores caçando a cada poucas semanas, sempre durante o dia, e os leões caçam a cada poucos dias, quase sempre à noite?
Nami: Sim, nosso povo conhece os leões de onde moramos. Os leões só se tornam perigosos quando têm filhotes quando um leão é ferido ou quando um leão dominante morre e um leão assume a liderança do bando. Nosso povo não tem nenhuma história ruim sobre leões desde que viemos morar aqui. Aprendemos a conviver com os poderosos leões. Precisamos conhecer todos os animais e plantas e as estrelas de onde moramos.
Os San e os leões são parecidos. Ambos são inteligentes, ambos viviam em grupos, ambos viviam perto da água e ambos caçam os mesmos antílopes grandes da mesma maneira — eles se aproximam da caça até a mesma distância, então um leão ataca ou um caçador atira uma flecha envenenada.
Os San veem o mundo como cheio de formas de vida interessantes cujas habilidades e motivos eles buscam entender. Das 18.000 espécies de besouros que vivem no sul da África, as larvas de alguns deles fornecem os venenos que os San colocam em suas flechas. Eles chamam pelo menos um desses besouros de kua e também /oan (“veneno”). Existem três grupos deles – Diamphidia, Polyclada e Lebistina, cujas larvas são encontradas a cerca de 30 cm profundidade em solo arenoso sob as árvores Commiphora. Os três besouros produzem venenos, mas os San aprenderam que se a larva parasita Lebistina infectar um dos outros, um veneno ainda mais potente é produzido. Assim, esses povos criaram a cultura de respeitar e aprender com os animais, as plantas e as estrelas de onde vivem.
Infelizmente, o colonizador europeu invadiu e rompeu esse acordo. Atualmente, o leão africano encontra-se extremamente ameaçado, em risco de extinção. Eles já habitaram a maior parte da África, mas desapareceram da grande maioria dos territórios e sua população foi muito reduzida nas últimas décadas.
Nami: E, vovó, as estrelas olhos de Maru vão ficar vigiando essa noite toda?
Nami: Essa noite, eles nasceram logo depois do por do Sol, entre o Leste e o Sul (horizonte sudeste). Eles estão bem dentro do caminho de cinzas, e vão acompanhar o caminho durante a noite.
Nami: A meia-noite, a estrela de seu olho esquerdo vai passar bem na linha que liga o Sul ao Norte.
Nami: E vão estar quase pondo entre o Sul e o Oeste, mais perto do Sul, quando o Sol nascer. Com a estrela olho-esquerdo se pondo antes da estrela olho-direito.
Naju: Caramba, ele vai vigiar essa noite toda!
Nami: Sim, ele está sempre vigiando o território lá no céu, sempre nos olhando da direção Sul. E essa noite, ele vigia a noite toda.
Naju: Essas histórias são incríveis, estou ansiosa para ver e ouvir novamente suas histórias.
Nami: Agora, vamos dormir antes do Sol nascer. Boa noite, minha neta.
Naju: Boa noite, vovó das estrelas!