Ciência em Poesia: O Mergulhador

Capa: Ocythoe tuberculata. Acervo iNaturalist/BioDiversity4All. (c) Ken (ken_flan). Licença CC-BY-NC-4.0.

O Mergulhador

Vinicius de Moraes, Rio de Janeiro, 1959.

Como, dentro do mar, libérrimos, os polvos 
No líquido luar tateiam a coisa a vir 
Assim, dentro do ar, meus lentos dedos loucos 
Passeiam no teu corpo a te buscar-te a ti. 

És a princípio doce plasma submarino 
Flutuando ao sabor de súbitas correntes 
Frias e quentes, substância estranha e íntima 
De teor irreal e tato transparente. 

Depois teu seio é a infância, duna mansa 
Cheia de alísios, marco espectral do istmo 
Onde, a nudez vestida só de lua branca 
Eu ia mergulhar minha face já triste. 

Nele soterro a mão como a cravei criança 
Noutro seio de que me lembro, também pleno… 
Mas não sei… o ímpeto deste é doído e espanta 
O outro me dava vida, este me mete medo. 

Toco uma a uma as doces glândulas em feixes 
Com a sensação que tinha ao mergulhar os dedos 
Na massa cintilante e convulsa de peixes 
Retiradas ao mar nas grandes redes pensas

E ponho-me a cismar… – mulher, como te expandes! 
Que imensa és tu! maior que o mar, maior que a infância! 
De coordenadas tais e horizontes tão grandes 
Que assim imersa em amor és uma Atlântida

Vem-me a vontade de matar em ti toda a poesia 
Tenho-te em garra; olhas-me apenas; e ouço 
No tato acelerar-se-me o sangue, na arritmia 
Que faz meu corpo vil querer teu corpo moço. 

E te amo, e te amo, e te amo, e te amo 
Como o bicho feroz ama, a morder, a fêmea 
Como o mar ao penhasco onde se atira insano 
E onde a bramir se aplaca e a que retorna sempre. 

Tenho-te e dou-me a ti válido e indissolúvel 
Buscando a cada vez, entre tudo o que enerva 
O imo do teu ser, o vórtice absoluto 
Onde possa colher a grande flor da treva. 

Amo-te os longos pés, ainda infantis e lentos 
Na tua criação; amo-te as hastes tenras 
Que sobem em suaves espirais adolescentes 
E infinitas, de toque exato e frêmito. 

Amo-te os braços juvenis que abraçam 
Confiantes meu criminoso desvario 
E as desveladas mãos, as mãos multiplicantes 
Que em cardume acompanham o meu nadar sombrio

Amo-te o colo pleno, onda de pluma e âmbar 
Onda lenta e sozinha onde se exaure o mar 
E onde é bom mergulhar até romper-me o sangue 
E me afogar de amor e chorar e chorar. 

Amo-te os grandes olhos sobre-humanos 
Nos quais, mergulhador, sondo a escura voragem 
Na ânsia de descobrir, nos mais fundos arcanos 
Sob o oceano, oceanos; e além, a minha imagem. 

Por isso – isso e ainda mais que a poesia não ousa 
Quando depois de muito mar, de muito amor 
Emergindo de ti, ah, que silêncio pousa 
Ah, que tristeza cai sobre o mergulhador!

Fonte: O Mergulhador, https://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/musica/cancoes/o-mergulhador

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