Capa: Naju criando a Via Lactea, criação por IA, Edge-Copilot.
Coleção AfroCéus: Primeira temporada
Paulo Henrique Colonese, 2024. Licença CC-BY-NC-4.0
Somos o que nossa terra é,
e nossa terra é o que somos.
ǂamn!oo é nossa mãe.
Nós somos ǂamn!oo.’
– Kuela Kiema, G|uikhoe, Tears for my Land
Hoje vamos fazer uma viagem no espaço e no tempo. Vamos viajar para o outro lado do Atlântico, na África. E conhecer os céus da cidade GOBABIS na NAMÍBIA, um país no sudoeste da ÁFRICA, vizinho de Botsuana e da África do Sul.
A Cidade de Gobabis, a Fonte do Elefante
O nome mais antigo para o assentamento nesta área foi Khoekhoegowab de Khoandabes, o lugar onde o elefante vinha lamber. A razão para este nome talvez venha das presas de elefante rachadas no clima seco e quente do território Omaheke (rosa) serem armazenadas no poço do assentamento. Uma interpretação anterior comum do nome, ǂkhoa (Elefante) -bes (lugar), Fonte do elefante , foi introduzida por Heinrich Vedder e ganhou ampla aceitação. Vedder diz que foi Amraal Lambert (o nome ocidental de ǂGaiǀnub) , líder dos Kaiǀkhauan (Khauas Nama) que chamou o lugar de Gobabis porque ele não conseguia pronunciar ǂKoabes.
Gobabis se localiza nas coordenadas 22o 26′ SUL e 18o 58′ LESTE. Quase a mesma latitude da cidade do Rio de Janeiro no Brasil, o que torna os céus cariocas e gobabienses muito semelhantes ao longo dos meses.
Vamos voltar a tempos antigos e observar os céus vistos por uma menina muito curiosa da cultura KhoiKhoi, um povo agrícola e pastoril nômade, vizinhos dos San, um povo de grandes caçadores e coletores que habitaram a região. A proximidade dos dois povos pode torná-los conhecidos como Khoisan.
Ela é muito curiosa e conhecedora de plantas silvestres, seus frutos e suas raizes e grande admiradora do céu. Vamos acompanhá-la em suas coletas de plantas ao longo das estações do ano e, com sua avó, conhecer outra menina ancestral que transformou o céu!
Vamos conhecer a curiosa menina Naju, da cultura Khoisan, que aprendeu a coletar muitos alimentos ao longo das estações do ano para sobrevivência de sua família e sua aldeia. E que descobriu muitas histórias do céu com sua avó Nami.
Naju coleta alimentos sagrados ao longo do ano
Durante o dia, Naju tinha muitas tarefas, ajudando seus pais a cuidar da roça e a procurar alimentos da época na região.
Ela sempre ia com os pais e sua sábia avó recolher frutos silvestres, raízes para comer ou fazer medicamentos.
Ela também ajudava a cultivar uma pequena quantidade de massango (Pennisetum glaucum) na lavra familiar.
O massango é um cereal conhecido como mexoeira em Moçambique. No Brasil, é conhecido de milheto ou milheto-pérola.
Sua família costumava andar de terra em terra à medida que os frutos se esgotavam. Nas suas caminhadas, ela adorava encontrar vários tipos de alimentos, mas isso dependia da época do ano. Com o passar do tempo, ela aprendeu a comer um pouco de tudo e a identificar frutas, raízes e cogumentos de muitas plantas e uma raiz muito especial – a twala– que sua avó usa para fazer “o antídoto para qualquer fruto que faça mal”. O que é muito importante caso algúem na aldeia coma algo que faça mal.
Vamos conhecer algumas das plantas alimentícias ancestrais que Naju aprendeu a identificar e preparar como alimento com seus pais e sua avó.
Kambro, uma raiz com muita água
Kambro, a raiz de água (Fockea angustifolia), é um tubérculo comestível que serve como fonte de água e alimento. Ela foi uma das primeiras plantas que Naju aprendeu a identificar pois quando está florida, sua flor parecer ter pequenos tentáculos.
As raízes da Kambro tem a forma parecida com nabos e chegam a ter 30 centímetros ou mais de comprimento. Elas podem ser comidas cruas quando novas ou cozidas, quando velhas, geralmente com carne. Também é excelente e crocante em uma salada de legumes frescos, enquanto sua capacidade de absorver líquidos o torna um ingrediente ideal para remoção de impurezas. Ela tem uma polpa esbranquiçada e aquosa com sabor de nozes que Naju adora. Sua polpa é crocante, suculenta, branca e macia, esponjosa, doce e aquosa, perfeita para viajantes com sede.
Seus pais a ensinaram a procurar água nas raízes de Kambro.
É necessário escavar a raiz semelhante a um nabo em um solo de cerca de vinte centímetros de profundidade. Em seguida, a raiz é raspada com uma faca e dessa mistura de mingau picado, a água é espremida.
Veja aqui como os guardiães Khoisan escavam cuidadosamente a raíz de uma planta medicinal sagrada, o pepino Gemsbok (Acanthosicyos naudinianus).
A Trufa do Deserto Kalahari
No verão e início do outono austral (de janeiro a abril), Naju adora encontrar as trufas do Kalahari (Kalaharituber pfeilii) muito aguardada. A curta temporada de trufas vem depois da chuva principal do verão. Eles a chamam de !nabas. Mas os Khoisan do deserto do Kalahari, as chamam de kuutse, mahupu ou n’xaba.
A mitologia Khoikhoi se refere às trufas comparando-as aos ovos do Impundulu, o “pássaro relâmpago” (Zulu) que aparece após uma tempestade. Impundulu detém o poder de convocar tempestades. Quando bate as asas, relâmpagos brilham no céu. Seu grito anuncia a chegada da chuva.
Na verdade, as trufas só crescem depois de uma quantidade suficiente (mas não muita) de chuva, o que ocorre entre janeiro e abril.
Elas são colhidas entre abril e junho e, após a primeira geada, desaparecem. As trufas do deserto não têm o mesmo sabor que as trufas europeias. São fungos usados em pratos salgados e podem ser preservadas. Elas estão disponíveis apenas por algumas semanas a cada ano e aparecem e desaparecem quase da noite para o dia.
A Árvore Marola e seus frutos
Naju também adora a fruta da árvore marula (Sclerocarya birrea) – a mais conhecida dos seus alimentos ancestrais, devido ao popular licor Amarula. Em algumas comunidades tradicionais, árvores de marula são propriedade de famílias e formam uma parte importante do patrimônio de cada família.
As frutas são consumidas frescas, enquanto o suco é fermentado para fazer uma bebida refrescante. Se o suco for fermentado por mais tempo, torna-se uma bebida alcoólica potente. Em sua forma fresca, o suco pode ser usado em uma variedade de preparações salgadas e doces, especialmente sobremesas. Além disso, as frutas e nozes são prensadas para fazer o óleo de marula, que se tornou um produto de beleza muito valorizado.
A deliciosa Maguni, a laranja de macaco
E, quando Naju encontra a Laranja de macaco (Strychnos cocculoides) ou maguni como é chamada no nordeste da Namíbia ou ainda ‘Limão Kavango‘ por namibianos, é motivo de festa! Ela é uma das frutas mais deliciosas da Namíbia. Esta fruta de cor laranja brilhante, com sua casca dura e grossa e polpa suculenta e acastanhada, tem um sabor bem complexo, sugerindo uma tigela de salada de frutas tropicais. Chupar a polpa doce das sementes é uma experiência alimentar muito gratificante e bagunçada. Mas preparar doces exige dedicação, pois dá trabalho fazer um doce de maguni.
No Brasil também existe uma fruta com o mesmo nome popular, a Laranja de Macaco (Posoqueria acutifolia) ou baga-de-macaco, bacupari-de-macaco, fruta-de-macaco, açucena-da-mata, flor-de-mico, pau-terra, mão-de-macaco ou araçá-da-praia. Para alguns povos indígenas da Mata Atlântica e os Galibis da Guiana Francesa é conhecida como Posoqueria, que em tupi-guarani quer dizer “bebida forte”, pois os índios usam as suas sementes para fazer um tipo de café.
Manketti, a fruta do Inverno
A polpa e os caroços (nozes) da fruta Manketti (Schinziophyton rautanenii) são comestíveis.
A fruta mantém-se bem e, durante os meses de inverno, quando outros alimentos não estão mais disponíveis, e desempenha um papel importante na suplementação das dietas de muitas famílias.
Uma vez consumida a fruta fresca, os caroços são deixados a secar ao sol para posterior utilização. Quando necessário, eles são reidratados em água. Os caroços são torrados antes de serem abertos para revelar suas deliciosas nozes.
Kiwando, um Melão com Chifres
O Melão com chifres (Cucumis metuliferus) é outra fruta que é fonte de nutrição e de água. Também chamado de pepino com chifres, melão gelatinoso ou kiwando. É uma das muitas espécies de pepino selvagem encontradas no deserto do Kalahari e em outras regiões da África Austral.
Quando totalmente maduro, o fruto tem casca amarelo-alaranjada e polpa verde-limão, mas pode ser consumido em qualquer estágio de maturação. Ele é muito usado como substituto de variedades domesticadas de pepino, mas possui espinhos afiados em forma de chifre, que devem ser removidos antes de manusear a fruta.
Omajowa, os cogumelos dos cupinzeiros
Omajowa (Termitomyces schimperi) são cogumelos selvagens encontrados no sopé de cupinzeiros construídos e habitados pela espécie Macrotermes michealseni. Seu nome vem da língua dos povos Herero, Ejova no singular e Owajowa no plural.
Os cogumelos podem crescer até o tamanho de uma “grande frigideira”. Quando emergem, o
corpo frutífero do fungo é do “tamanho do punho de um homem”, mas crescem rapidamente para 15 a 28 cm e pode chegar a 40 cm de diâmetro. Os topos são brancos. Descoloração amarelada a marrom-avermelhada das escamas grossas e macias pode ocorrer no solo do monte. Abaixo da camada mais superior, as escamas são brancas. O cogumelo geralmente aparece após chuvas torrenciais de 12 mm ou mais durante a primavera, mas a colheita principal se desenvolve durante janeiro a março, que é a principal estação chuvosa. Se as hifas permanecerem no monte quando colhidas, elas podem crescer no mesmo monte de cupins por muitos anos.
Eles são os mais conhecidos e valorizados de todos os alimentos silvestres da Namíbia. Durante a temporada, as principais estradas no centro e em algumas partes do norte da Namíbia ficam repletas de vendedores de omajowa, mas apenas durante a curta temporada após as primeiras chuvas. Esses fungos não se conservam bem e devem ser consumidos o mais rápido possível após a colheita. Eles são comumente usados em sopas, como ‘bifes’ omajowa grelhados.
Os cupinzeiros podem frequentemente estender-se até 3 a 4 metros de altura com seus ápices inclinados para o norte. O cupim associado é Macrotermes michaelseni. Na Zâmbia, o cogumelo também pode ser encontrado em cupinzeiros do cupim Odontotermes patruus.
O cogumelo é visto como um símbolo de crescimento e prosperidade pelos namibianos e é altamente valorizado na cultura dos povos da Namibia.
Naju olha para o céu
Toda noite ao longo do ano, Naju passava as primeiras horas da noite observando o céu de sua aldeia com sua avó Nami, admirando as estrelas e uma brilhante estrada de estrelas. De tanto observar, ela percebeu como ela ia mudando durante cada noite e as estações. Vamos descobrir o que ela observou durante o ano, por volta das 21 horas do dia 15 de cada mês do ano.
Simulação do céu de Gobabi para os meses de 2025, Stellarium.
Ao observar o céu, sua avó Nami apresentou muitas estrelas especiais como as estrelas das três zebras, do caçador e suas esposas, do leão, dos ovos de formiga/cupim, de maru (os olhos da fera) e do antílope, cada uma com suas histórias ancestrais.
Mas o que Naju mais ficou curiosa foi a brilhante estrada brilhante e sua grande fogueira central. Assim, curiosa, Naju perguntou a sua avó Nami:
Naju: Vovó, o que é aquele caminho brilhante no céu?
Nami: Esse caminho de estrelas foi criado por uma menina muito curiosa chamada Aeka que tinha poderes mágicos. Ela tinha poderes mágicos tão fortes que quando viu um grupo de leões ferozes, eles foram transformados em estrelas, mas essa é outra história…
Aeka cria um caminho de estrelas
Nami: Um dia, a menina mágica Aeka estava muito teimosa e passou o dia todo resmungando com sua mãe. Ao anoitecer, no jantar ao redor da fogueira com muitas raízes cozidas e torradas, sua mãe não deu as raízes preferidas de Aeka como castigo pelas teimosias do dia. Aeka ficou muito zangada quando sua mãe não lhe deu nenhum pedaço das deliciosas raizes assadas na fogueira.
Naju: O que ela fez?
Nami: Aeka, muito teimosa, pegou as cinzas da fogueira e lançou para cima, bem alto no céu. Em seguida, ela pegou pedaços de raízes e também jogou para o alto, com tanta força que elas chegaram aos céus. Os pedaços velhos (vermelhos) criaram as estrelas vermelhas e os pedaços jovens (brancos) criaram as estrelas brancas. Assim, as cinzas e as estrelas formaram a estrada das estrelas com as brasas criando uma fogueira bem luminosa no centro.
Naju: E qual o nome desse caminho de estrelas?
Nami: Ele é chamado de “tsaob” que significa cinzas ou “ember” que significa brasas na fogueira.
Nami: E você observou em que direção o caminho de cinzas aponta? E como ele muda durante a noite?
Naju: Sim, ele está sempre na direção sul-norte, mas vai girando durante a noite do leste para o oeste. E a cada estação das chuvas e da seca, podemos ver um pedaço diferente do caminho.
Nami: Este caminho brilhante de cinzas é muito importante para os nossos caçadores que voltam para casa durante a noite.
A escritora Maritha Snyman realça a importância do caminho de cinzas e brazas com outra versão dessa história, onde a heroína é uma esposa preocupada com o marido que não voltava da caça. Essa versão foi adaptada da versão publicada no livro Stories of the Southern Skies, The Crocodile who swallows the Sun, da SAASTA (South African Agency for Science and Technology Advancement). Maritha nos conta que:
Há muito tempo, antes de haver estrelas no céu, uma jovem era casada com um grande e valente caçador.
Durante o dia, o marido saía para caçar e ela ficava em casa colhendo frutos do veld (africânder: campo da savana).
No final de cada dia, o caçador voltava para casa. E juntos, eles acendiam uma fogueira e compartilhavam uma refeição.
Um dia, a mulher esperou, esperou e esperou, mas seu marido caçador não veio.
O astro solar começou a se pôr e, mesmo assim, ele ainda não tinha voltado para casa.
O Sol se pôs, e não havia Lua naquela noite, e ficou tudo muito escuro.
Ela acendeu a fogueira sozinha para que ele visse a luz da fogueira, mas mesmo assim, o marido não voltou.
Ela começou a temer pela vida do marido, sabendo que ele não encontraria o caminho para casa na grande escuridão da noite.
Enquanto esperava, ela observou como as chamas da fogueira transformavam a madeira em cinzas e brasas vermelhas.
Tão grande era seu medo pelo marido que amava, que ela pegou as cinzas e brasas ainda quentes com suas próprias mãos e as jogou bem para o alto no céu escuro.
As brasas se transformaram em cinzas brancas e amareladas e flutuaram, subindo cada vez mais alto durante a noite, e se fixaram no céu escuro como uma estrada larga e cintilante.
O caçador perdido viu e seguiu a direção do caminho das cinzas cintilantes e voltou para casa em segurança.
E até hoje, esta estrada brilhante ainda parece um caminho brilhante no céu noturno indicando aos caçadores como voltar para casa.
Naju: E em cada estação, conseguimos ver no início da noite as estrelas-constelações que marcam o céu de cada mês. Quero conhecer todas as histórias dessas estrelas.
Nami: Sim, são histórias dos nossos ancestrais que nos ajudam a marcar o ano, suas estações. Mas isso fica para outra noite. Já está tarde e precisamos dormir.
Naju: Eu vou sonhar com todas elas. Boa noite, vovó.
Nami: Boa noite, minha neta. Bons sonhos.
Principais Fontes da história
Essa narrativa está baseada pricipalmente no livro Espécimes do folclore bosquímano [San] por W.H.I. Bleek e L.C. Lloyd, publicado em 1911. Várias outras referências encontradas são uma versão muito simplificada da história, omitindo principalmente os detalhes observados pelo povo San dos movimentos da Via Láctea durante a noite. E, deste modo, a explicação mitológica do movimento aparente se torna muito mais detalhada e profunda. Além disso, a narrativa de um contador de histórias San chamado Sonhador também detalha o motivo do castigo que deixou a menina da primeira raça, uma “titânide” primordial africana poderosa. Você pode fazer download ou ler uma tradução do conto em português abaixo.
Além disso, a pesquisa de alimentação na Namíbia está baseada no livro Commercializing Indigenous Plant Products in Namibia. Você pode fazer download ou ler o livro em inglês abaixo:
E, é claro, o grande levantamento de pesquisas sobre Astronomia Cultural de povos africanos, o livro Venus Rising: South African Astronomical Beliefs, Customs and Observations de P. G. Alcock que reune um grande número de pesquisas sobre a cosmologia e mitologias celestes de diferentes povos africanos. O levantamento não aprofunda muito as histórias, mas serve com uma grande fonte de referências dos pesquisadores originais que investigam mais a fundo as histórias celestes culturais e faz pequenas análises sobre divergências e incogruências nas narrativas das pesquisas.