Maurice Jacques Bazin, (1934-2009), Membro fundador do Espaço Ciência Viva.
Departamento de Física, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, RJ, Brasil (1982).
Nota Didática, março, 1983. (Texto editado de uma conferência dada em outubro de 1982 a convite dos estudantes do Centro Galileu Galilei da PUC/RJ). Um clássico da Educação em Ciências, pensando a formação do graduando há 37 anos atrás, mas ainda bem atual.
Fazer ciência é tentar compreender algumas coisas do mundo físico que nos rodeia.
Uma característica desta atividade, quando ela tem êxito, é que a pessoa que a desenvolve acaba entendendo o que estudou, acaba elaborando na sua própria cabeça as conexões entre fatos experimentais investigados e vários simbolismos e representações do mundo já internalizados por ela. Para dominar esse processo que combina atividade manual e intelectual, o já adquirido no passado e o sendo adquirido no presente, é necessário que cada pessoa passe, individualmente, através do processo de descobrir, entender, fazer essas conexões que acontecem em nossas cabeças entre o que observamos e o que imaginamos, para chegar a uma representação do mundo, ou pelo menos do pedaço do mundo que estamos estudando.
Mas este processo de apropriação não acontece num vazio. Muitas pessoas estudaram este mundo antes de nós, e a nossa percepção atual resulta da acumulação de muitos trabalhos sucessivos que, em cada época, influenciaram a elaboração da própria maneira de pensar o mundo. Os dados objetivos ficam os mesmos: uma pedra caía no chão no tempo de Aristóteles e continua caindo da mesma maneira no tempo de Mao Tse Tung. Mas a maneira de observar essa queda, a maneira de descrevê-la, evolui. Ela depende da perspectiva dos atores, das necessidades materiais e dos interesses culturais das pessoas que estão fazendo as observações, mentalizando uma descrição do fenômeno e elaborando conexões teóricas. Então é simplista dizer que a Física é a mesma no Japão e na Terra do Fogo.
A diversidade das perspectivas culturais faz parte da riqueza da atividade humana.
Os seres humanos que fazem ciência e interpretam os dados do mundo material, tem seus “pré” conceitos, sua linguagem, que traduz uma perspectiva cultural, suas orientações herdadas consciente ou inconscientemente. Nenhuma atividade científica existe fora de um contexto social; senão a própria “ciência pura” nunca teria evoluído! Cada pessoa que faz Iniciação Cientifica tem um orientador; esse orientador orienta em certa direção; essa direção não é arbitraria. Portanto é necessário colocar essa atividade em perspectiva histórica.
A Iniciação Cientifica também tem sua historicidade. No Brasil, a atividade universitária, a formação sistemática de cientistas envolvendo um grande número de pessoas, é algo recente; nasceu nos últimos 25 anos. Para criar o programa de Iniciação Científica os universitários brasileiros foram buscar inspiração nos·países que já tinham uma atividade científica institucionalizada: Estados Unidos e França. Nesses dois países seleciona-se estudantes para dar a eles, o mais cedo possível, uma visão do que é o mundo concreto da atividade cientifica em forma de pesquisa acadêmica ou de pesquisa aplicada, o que os americanos chamam “Research and Development” ou “R and D”. Esses programas envolvem não só estudantes de ciência, mas também os de engenharia. Nos Estados Unidos essa atividade toma tipicamente a forma de uma tese de último ano de graduação (Senior Thesis). Usualmente não é um projeto original, mas ligado às atividades em curso no departamento onde está o estudante. Em universidades de renome essa tese é obrigatória. Na França a atividade equivalente toma urna forma surpreendentemente menos formal do que nos Estados Unidos; consiste num estágio. O estudante passa sistematicamente parte do seu tempo num laboratório universitário ou industrial. Habitualmente deve apresentar um relatório. Por imitação, surgiu a Iniciação Cientifica no Brasil. Por isso sua forma é selecionada, elitizada, limitada na prática a universidades onde há pesquisa.
O que representa essa etapa da Iniciação Científica na formação universitária?
Desejaria que fosse uma segunda ruptura positiva no treinamento intelectual dos estudantes. A primeira ocorre entre o secundário e a universidade. Usualmente essa ruptura está descrita da seguinte maneira: se diz que quando se vai à universidade, faz-se as coisas mais a fundo, se adquire um saber melhor, um saber mais complicado, se fazem coisas superiores. Usa-se essa visão de que a pessoa progride “subindo”, ou que progride também “mergulhando mais fundo nas coisas”. É uma visão de um percurso vertical, unidimensional. Mas não se fala do que deveria ser o mais importante:
uma mudança de perspectiva, uma mudança de como se encara a atividade cientifica.
No secundário a posição do estudante é extremamente dependente, obediente. Toma as suas notas, aprende suas fórmulas, tem que passar no vestibular e responder pelos “sins”, pelos “nãos”; não ha possibilidade de criatividade individual. É um receber passivo de um suposto saber que outros têm. Essa maneira de transmitir um saber põe as pessoas que vem depois numa situação dependente das pessoas que as precederam. Outra maneira consistiria em tentar facilitar as pessoas que vem depois o poder de criticar e de modificar o que recebem. Seria formar os indivíduos como seres poderosos, livres, capazes de agir por decisão própria e dominar o que estão fazendo. A educação secundaria não se preocupa com isso.
Ninguém faz experiências, ninguém redescobre por si mesmo; no secundário desenha-se um pêndulo no quadro negro; nada oscila de verdade. Tem que acreditar no que outros fizeram. O professor se protege atrás do “a Ciência diz” ou “os cientistas dizem”; divulga imagens de magos superiores nos quais você tem que acreditar. Às vezes até tem na parede retratos desses veneráveis senhores. Basta repetir os enunciados de leis que eles supostamente descobriram sozinhos.
Quando os estudantes chegam à universidade seria fácil continuar promovendo essa atitude passiva. Mas, pelo menos aqui, no Departamento de Física da PUC/RJ, …
tentamos colocar vocês nos laboratórios básicos, em situações que forcem vocês a viver por vocês mesmos o “como se faz” uma experiência de física. Tentamos dar a vocês a oportunidade de sentir o prazer de fazer pela primeira vez um pouco de ciência. Vocês fazem experiências claras de física básica, guiados por perguntas orientadoras.
Então, a ruptura que vejo na entrada da universidade consiste nos estudantes se libertarem da atitude que consistiria em perguntar ao professor “é isso o que o senhor quer?” ou “é isso que é o resultado?” e que, em vez disso, quando o estudante chama o docente na sala, que a conversa seja: “olha o que eu encontrei, o que eu descobri”.
E ali o professor pode conversar: “como você interpreta isso?“; que seja a pessoa que descobriu que estabeleça sua perspectiva. Entretanto ainda é um trabalho que parte do que está oferecido num cardápio pré-estabelecido, mas pelo menos é uma prática, na qual, está declarado abertamente que a iniciativa de como praticar está nas mãos dos estudantes.
A Iniciação Cientifica pode ser considerada como a etapa seguinte a caminho da independência intelectual. O estudante já tem mais escolha. Aproveita-se a sua curiosidade, o seu interesse pessoal; ele pede finalmente dizer “´é isso que quero conhecer”.
É o estudante quem escolhe o seu orientador. Então, eu veria essa Iniciação Cientifica como parte do processo de formação, de um caminhar para fazer ciência no sentido da definição dada por Feynman:
“fazer Ciência é conseguir deixar de acreditar nos especialistas”,
isto é, você se substitui aos peritos; você está realmente se transformando num individuo seguro pelo seu trabalho próprio, e abandonar a atitude de simplesmente aceitar como verdade o que é dado pelos outros. Temos, então, uma dialética nessa ruptura.
É a dialética entre o respeito (submisso) e o “des”-respeito (ativo). Estamos falando de passar de uma atitude que consiste em dizer “a Ciência mostrou que”, ou “meus mestres mostraram que” para “a partir de tal atividade, tal ação minha, tal manipulação minha, tais observações que eu fiz, vejo e descrevo que as coisas acontecem de tal maneira.” uma atitude muito diferente.
Então essa Iniciação é para fazer ciência.
Mas o mundo real impõe limitações; não deixa o estudante se dedicar inteiramente a essa atividade: não é possível passar horas com um orientador num laboratório maravilhoso: onde qualquer coisa que se pensa comprar pode ser adquirida. No mundo real, cada um tem sempre outras atividades consideradas prioritárias. Vocês têm suas P1, P2, P3, etc. e o professor corrige as P1, P2, P3, etc. Temos de um lado as limitações de vocês, do outro, as limitações dos professores.
As ferramentas que vocês desenvolvem são muito poucas, estão muito longe de serem as ferramentas que permitiriam se juntar a uma investigação que está agitando o mundo científico hoje.
O leque de conhecimentos que vocês podem conectar entre si é também limitado.
O seu saber e muito formal, muito formalizado em fórmulas curtas e leis numeradas: a “fórmula do pêndulo”, as 1ª, 2ª e 3ª leis da termodinâmica. Vocês se lembram do nome da lei de tal fulano sem conhecer o seu conteúdo.
Qual é vantagem de se referir a uma lei física pelo nome da primeira pessoa que a enunciou? Vejo só uma conseqüência: continua pondo os estudantes numa situação de respeito [passivo] e dependência automática.
Do lado dos professores, o mundo real da carreira profissional não valoriza a atividade de orientação de pessoas jovens. Não se põe no currículo a orientação de um estudante de Iniciação Científica. As pessoas que estão mais ativas na investigação muitas vezes não querem ou simplesmente não dão muito tempo para os mais jovens, as vezes passam esse jovem para outra pessoa que está fazendo um trabalho de pós-graduação.
Encontramos outra dificuldade na escolha do tema de um projeto de Iniciação Científica ele tem que ser realizável. Não pede ser, por exemplo, uma “avaliação das teorias unificadas”. Não seria honesto propor tal tópico. De um lado se deve escolher um assunto restrito e acessível, mas do outro lado utilizar o trabalho ao redor desse assunto restrito para dar uma visão abrangente do que significa fazer ciência.
Não e tampouco trivial encontrar temas que sejam acessíveis a pessoas com as limitações das quais acabo de falar, e que sejam ao mesmo tempo de um certo interesse.
Vejo quatro tipos de atividades possíveis para a Iniciação Cientifica.
[Olhando o Passado, De Volta Ao Futuro]
Um tipo de projeto seria olhar no passado como aconteceram certos momentos cruciais da atividade cientifica e ver os detalhes dos raciocínios e os detalhes das experiências. Seria tentar ver como raciocinou e agiu a pessoa que descobriu um fenômeno, reaproveitar a brutalidade (aspereza) e a clareza da linguagem de quem conseguiu enunciar um fenômeno novo. Assim verificaremos que não há descoberta repentina, no sentido de um encontro surpreendente: muitas coisas estão já ali presentes; é o juntar de várias coisas; é todo um processo que é fascinante encontrar descrito pela pessoa que o viveu. Por exemplo, lendo o que Oersted escreveu quando notou que uma corrente elétrica passando num fio fazia desviar a agulha de uma bússola, vocês descobrem o tom de surpresa total frente a um fenômeno novo. Essa coisa não estava no quadro de pensamento estabelecido antes de tomar a sério essa observação. É a expressão de uma ruptura científica, a primeira descrição a sério de uma coisa experimental que não havia.
Hoje, no curso de Física III fazemos vocês descobrirem que essa coisa por aí tem algo que ver com o produto vetorial. Na época de Oersted, em 1800, todas as interações eram “centrais”: vinham dum lugar e iam para o outro ao longo dessa direção. Tentem, então, imaginar [a surpresa e o espanto de] uma interação vetorial, uma força cuja direção é perpendicular à direção de onde vem a “causa”. É tudo muito estranho, mas está bem ali na mesa de Oersted e ele expressa isso.
Ler Oersted por si só não faz um projeto de Iniciação Científica, mas dá uma sugestão do que vale a pena buscar.
Entretanto, olhar como Monsieur Sadi Carnot chegou a falar do “Ciclo de Carnot” seria um projeto válido. Para vocês, o ciclo de Carnot é um desenho fechado, é uma coisa chata, abstrata, até artificial. Mas o problema que o engenheiro Sadi Carnot queria resolver era muito concreto e fundamental na época: era por ordem nos melhoramentos técnicos já existentes da máquina a vapor e encontrar princípios gerais para otimizar o seu rendimento. No livro “A Potência Motriz do Fogo” ele apresenta a situação da indústria da época e a tecnologia da máquina a vapor. Depois ele desenvolve o raciocínio geral que leva à dependência do rendimento das máquinas térmicas utilizando o calórico como um fluido real. É esse raciocínio que encontramos hoje nos livros-textos reduzido a operações lógicas e expurgado de todo o sabor da linguagem e de toda a perspectiva de Carnot.
Em seguida, Carnot calcula rendimentos reais obtidos com várias substâncias: ar, vapor de água e álcool; ele utiliza os coeficientes de expansão e os calores específicos medidos experimentalmente por engenheiros e físicos a várias temperaturas. E assim ele estabelece a correspondência entre as suas conjecturas teóricas e a realidade das caldeiras. É uma obra completa; a sua leitura e muito mais viva do que o enunciado da primeira e da segunda lei da termodinâmica em qualquer livro-texto. Provoca uma mudança na cabeça de quem consegue aproveitar uma leitura.
A primeira vez que eu senti a riqueza de um texto original, estava ensinando em um curso de termodinâmica estatística. Devia falar da distribuição de velocidades num gás; a chamada distribuição de Maxwell. Achava a apresentação nos livros muito complicada, sempre com enormes integrais. Então, como tinha na altura o privilégio de ser professor em Princeton, fui simplesmente a biblioteca e encontrei o artigo original de Maxwell. Descobri um texto elegantíssimo, fascinante, de uma tremenda clareza matemática e física onde, depois de fazer a derivação matemática, falava das verificações experimentais. Maxwell também valorizava o real: para ele não existia teórico sem experimentador.
[Temas Geradores]
Um segundo tipo de projeto consistiria em utilizar os trabalhos de várias pessoas em torno de um tema gerador. Um tal tema, que vários estudantes se propuseram recentemente, envolve os chamados testes experimentais da teoria da relatividade geral. O projeto não pode consistir em apenas mandar os estudantes ler um livro-texto clássico e refazer (ou copiar) os cálculos dos “efeitos”. O projeto interessante seria pesquisar qual foi a ligação entre essas coisas experimentais, observacionais e a elaboração teórica, será ver como as experiências foram feitas em detalhes, a que nível se pode acreditar nelas. Por exemplo, as medições do desvio da luz pelo Sol têm problemas muito delicados com as fotografias e as medições das placas. Mas usualmente quando se fala desses testes, apresenta-se apenas um esqueleto seco, sem problemática. A Iniciação Científica poderia sair dessa superficialidade, sair do enlatado do ensino formal acabado mandando nos ver de perto como foram feitas as medidas, porque uma experiência funcionou, ou não funcionou. Será mexer na vida real da física experimental.
[Questões e Polêmicas Contemporâneas]
Pode-se também escolher assuntos contemporâneos para a Iniciação Científica desde que sejam acessíveis em nível de graduação. Vários problemas de astrofísica ou cosmologia tem ao mesmo tempo a atração dos assuntos em moda e a possibilidade de aprofundar um assunto onde o observado está intimamente ligado às interpretações teóricas.
Vários assuntos ensinam como se misturam aspectos técnicos e debates na produção científica.
Um tema poderia ser, por exemplo, procurar as coisas [argumentos] que permitem escolher entre uma teoria “big bang” cosmológica – tudo começou numa explosão e uma teoria cosmológica estacionaria, na qual há constantemente criação de matéria para manter a densidade estacionaria.
Ou, se poderia ver o que aconteceu com os quasares, esse nome badalado que desperta a curiosidade de qualquer pessoa jovem. A primeira vez que eu dirigi um estudante para uma tese de último ano de graduação nos Estados Unidos propus um estudo relacionado com os quasares. Tinham sido descobertas umas linhas de absorção nos espectros dos quasares que não se conseguia interpretar.
Supondo que elas sejam linhas habituais de átomos conhecidos, tinham que ser tremendamente deslocadas. Para certos quasares nem se conseguia fazer isso. Na mesma época tinha surgido a necessidade de utilizar quarks na teoria das partículas elementares. Então foi lançada a idéia de que poderiam existir estrelas de quarks. As superfícies delas teriam quarks rodeados com elétrons. Teríamos transições eletrônicas de átomos com núcleos com cargas não inteiras. Era refazer o trabalho de Balmer para organizar essas linhas. E funcionava surpreendentemente bem. Então, eu mandei um estudante ler a literatura contemporânea para seguir essa polêmica e tentar julgar o que fazia sentido ou não fazia sentido. Era um assunto interessante, bem específico e estudável com ferramentas modestas. Mas era também abrangente em termos dos interesses da física atual.
[Integrar-se a Equipe de Pesquisadores]
Ate agora propus fazer estudar ou avaliar trabalhos realizados por outros. Mas em situações excepcionais um estudante pode se integrar numa equipe de pesquisa e se responsabilizar por um pedacinho de trabalho, que não necessariamente faça parte da pesquisa principal, mas aproveite um equipamento existente ou represente o desenvolvimento de uma técnica experimental específica. Por exemplo, mesmo se todo mundo supostamente aprendeu em Física II o que é um calor específico, medir um calor específico a baixa temperatura quando ele vale um milésimo do seu valor a temperatura ambiente, é um problema experimental sério. Então, num laboratório como o da PUC onde se utiliza muito as baixas temperaturas e se mede calores específicos para investigar transições de fase, se pode fazer um projeto de Iniciação Científica que consistiria simplesmente em medir cuidadosamente um calor específico à baixa temperatura.
Então, apesar das limitações que mencionei anteriormente, os projetos possíveis em Iniciação Científica são muitos variados.
Todos visam abrir o horizonte e fazer que o estudante sinta de perto o que é fazer ciência.
Resta obter a bolsa do CNPq…
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