Imagem da capa: Leão-Sul-Africano (Panthera leo ssp. melanochaita). © Allan Hopkins, 2017. Acervo iNaturalist. Licença CC-BY-NC.
Coleção AfroCéus: Primeira temporada
Autor: Paulo Henrique Colonese. Licença CC-BY-NC-SA-4.0.
Todos os organismos caçam e coletam. Animais (e até mesmo plantas e micróbios) capturam e recirculam os recursos dos quais nosso planeta e seus ecossistemas são feitos. Como seres humanos, nascemos deste planeta. Ainda somos todos caçadores-coletores. Pertencemos aqui de uma forma que nunca poderemos além da nossa Terra. Mas agora “caçamos e coletamos” de maneiras que mudam tanto o equilíbrio do ecossistema que a vida como a conhecemos está desaparecendo. Para sempre. Nossa história San nos lembra a todos da importância de viver de forma sustentável, como as pessoas têm feito por centenas de milhares de anos… ou então corremos o risco de perder o mundo como o conhecemos.
Após conhecer a história do caminho de estrelas (cinzas, brasas e raízes) no céu em nossa primeira história dos céus africanos, Naju, nossa curiosa menina Khoisan, pediu que sua avó Nami lhe mostrasse o céu do início do mês de janeiro para conhecer as estrelas e as histórias celestes da estação das chuvas.
Naju: Vovó, podemos ver as estrelas hoje a noite, depois do jantar? Quero conhecer mais sobre o céu e as estrelas de nossos povos.
Nami: Sim, essa noite não teremos nuvens e poderemos aproveitar para conhecer algumas estrelas.
Desse modo, assim que o Sol começou a se por, elas jantaram e se sentaram no meio da aldeia para ver o céu.
Nami: Você já conhece a direção do nascente, a região no horizonte onde o Sol nasce?
Naju: Sim, é naquela direção. Ainda está claro, só consigo ver algumas poucas estrelas que estão começando a aparecer.
Nami: Vamos aguardar um pouquinho e olhar na direção do nascente e ver quem está surgindo. Olhe bem e me diga o que consegue ver.
Naju: Estou vendo a estrada de cinzas, mas ela está bem encostada no horizonte. E aquelas três estrelinhas que estão uma do lado da outra e perto delas, algumas outras estrelas que sempre aparecem nessa época. Quem são essas três estrelinhas? Elas sempre aparecem nas noites de verão.
Nami: Elas são as /goregu, as três zebras que fogem de um caçador. Para os nossos parentes Nyae Nyae !Kung, elas são uma zebra macho no centro, cercado por duas zebras fêmeas. Meu pai, seu bisavô, um grande caçador, dizia que elas são as /Quaggas que tinham listras marrons e brancas principalmente na cabeça e no pescoço, partes superiores marrom-avermelhadas a marrons e barriga, cauda e pernas esbranquiçadas, mas eu nunca as vi pois hoje elas só existem no céu.
Naju: Já estou vendo. São fáceis de achar! Eu queria ter conhecido as quaggas, deviam ser lindas todas malhadas assim. Por que elas não existem mais?
Nami: Pela ganância e cegueira dos fazendeiros invasores que as caçaram sem parar para colocar os seus gados no território das Quaggas.
Naju: Mas as /Goregu são zebras das planícies ou são as grandes zebras das montanhas?
Nami: Elas são zebras de planície, como as Quaggas, aquelas que também tem listras marrons entre as listras pretas. Elas estão procurando água e comida. Ainda nem perceberam o caçador e o grande leão que as observam.
Aproveite para conhecer os dois tipos de zebras nas imagens abaixo. E identifique as zebras da planície!
Naju: Esta história está ficando interessante, tem um leão e um caçador? Mas onde está o caçador?
Nami: Ele é a brilhante estrela vermelha AOB. Se você imaginar uma linha reta saindo das 3 zebras na direção norte, a linha vai chegar em uma estrela vermelha, a estrela do caçador. Ela representa os nossos caçadores.
Os Khoisan são exímios caçadores há milênios, como mostram os desenhos de caça e animais da arte rupestre da Namíbia. E também foram muito registrados pelos invasores europeus que chegaram em nossas terras. Conheça algumas ilustrações publicadas por artistas e viajantes europeus dos caçadores Khoisan nas imagens abaixo.
Nami: Mas atenção, o caçador hoje está acompanhado de //aegu/gamirob, a brilhante “Estrela” do Meio, um planeta (Júpiter) que vai ficar ali por perto até maio, se afastando aos poucos do caçador. Isso pode nos ajudar a achar a estrela AOB. E o caçador estará sempre, sempre, próximo de suas esposas, um grupo de estrelinhas azuladas que ficam depois dele. Consegue achá-las?
Naju: Sim, achei, são lindas e azuladas. Mas o que elas estão fazendo, estão caçando também?
Nami: Elas fazem parte da história e da missão do nosso caçador!
Naju: Que missão?
Nami: Bem, as esposas eram filhas do deus do céu Tsui //Goab. Elas eram chamadas de /khuseti ou /kxuseti do verbo /hu que significa reunir, agrupar por que elas estão muito juntinhas, reunidas em sua casa na aldeia. Elas também são chamadas de #ao/gamiroti ou as “Estrelas da Geada” pois anunciam o inverno quando surgem pela manhã, antes do Sol nascer, mas essa é uma história para quando chegar o inverno. Nessa época do ano, quando surgem à noite, nós a chamamos de as Estrelas da Chuvas.
Nami: Continuando, foram as esposas que deram a missão ao caçador. As Khuseti disseram ao marido: “Vá e atire flecha nessas três zebras para podermos comer sua deliciosa carne. Mas se você não atirar ou errar, não ouse voltar para casa de mãos vazias”. Elas já estavam a muito tempo sem comer carne e não admitiam que seu marido não caçasse pra elas.
Naju: E o que aconteceu? Ele conseguiu caçar as zebras?
Nami: Obediente, o marido saiu para caçar, mas ele levou apenas uma flecha com ele.
Naju: E ele fez a marca dele na flecha e preparou a flecha com veneno?
Nami: Sim, cada caçador marca as suas flechas para poder reconhecer e coletá-las depois sem confundir com as flechas de outros caçadores. É com o |kwae que eles fazem as marcas. Eles colocam tto nele, e eles batem o tto junto com o ||kuae ; e o ||kuae fica vermelho por conta disso; então, eles marcam as flechas com ele. O |kwae é suco de ||kuarri . É como uma abóbora, é redondo. Seu suco é branco; é como água. Seu suco não é um pouco branco; sua brancura se assemelha ao leite. Mas é um grande veneno. Os caçadores fazem uma incisão e colocam o ||kuwarri para baixo; e então seguram um casco de jabuti por baixo dela para coletar o suco e fazer ||kuae dele. Então, eles aquecem no fogo, deixando-o quente; e batem quando está quente. Então, deixam esfriar. Depois, pegam o veneno com um bastão de um galho para colocar nas flechas.
Duas espécies principais de Diamphidia são usadas, a Diamphidia nigroornata (planta hospedeira Commiphora angolensis) e a Diamphidia vittatipennis (planta hospedeira Commiphora africana). Além disso, larvas do besouro Polyclada flexuosa (planta hospedeira Sclerocarya caffra) também podem ser usadas como toxina.
O Diamphidia nigroornata adulto se alimenta da planta hospedeira durante o dia e, se perturbada, ela cai rapidamente no chão ou voa. Os ovos são alongados, ovais com uma tonalidade laranja e são colocados nos galhos das plantas Commiphora em lotes de até 15 ovos cada, intimamente ligados uns aos outros. Depois de colocar um lote de ovos, a fêmea o cobre com excrementos esverdeados, usando as patas traseiras para acumular o depósito. Ao secar, esse excremento torna-se marrom-escuro e fica bem camuflado contra o galho ao qual está preso.
As larvas passam por três mudas. Eles se alimentam das folhas da planta hospedeira.
As larvas são parasitadas por uma espécie de besouro Carabidae chamada Lebistina holubi. As larvas de Lebistina, ligando-se a larvas adultas de Diamphidia vittatipennis, entram em seus casulos, onde se alimentam de sangue e partes moles das larvas de Diamphidia, eventualmente matando-as.
Após a conclusão de seu desenvolvimento na planta hospedeira, as larvas se enterram de 0,5 a 1 m no solo arenoso nas proximidades do arbusto da planta hospedeira. Elas então fazem um casulo em torno de si mesmas de areia e secreções da região anal. As larvas permanecem enroladas no casulo por vários anos antes de finalmente se transformarem em pupas. Esse período variável de desenvolvimento interrompido permite aos caçadores San encontrar casulos ao longo do ano, para usar como veneno em suas flechas.
A pesquisa mais recente de Chaboo CS, Biesele M, Hitchcock RK, Weeks A (2016) indica que o veneno de flecha de besouro é usado por sete grupos San — os G|ui, G||ana, G||olo, Naro, Kua e Tsila em Botsuana e os Hai||om e Ju|’hoansi na Namíbia. Dois grupos San, os Shua e Tshwa do nordeste de Kalahari, em Botsuana e Zimbábue, não usam venenos de flecha (usam lanças maiores em sua caça). Um grupo San, o Hai||om, usa um veneno de planta. O Valley Bisa na Zâmbia é um grupo não-San que usa veneno de flecha de besouro. Eles também pesquisaram outras comunidades menores. Como essas diversas nações San são tão pouco conhecidas, os autores resumem a localização, o status contemporâneo e o conhecimento dos venenos de flecha em seu estudo. Um exemplo da diversidade e localidade dos venenos usados e da necessidade de mais pesquisas de campo com os diversos grupos.
Naju: E ele conseguiu caçar uma zebra para alimentar as esposas?
Nami: Ele avistou as zebras, se aproximou lentamente e atirou a flecha na zebra macho, a estrela do meio, mas infelizmente para seu azar ele errou. A sua flecha passou entre as zebras e caiu depois delas e ainda está lá até hoje no céu – umas estrelinhas quase alinhadas e próximas que ficam logo acima das zebras.
Naju: Que tipo de flecha o caçador usava: as longas e pontiagudas perfurantes ou as com pontas cortantes?
Nami: Ele usava uma flecha meio perfurante e meio cortante. Conseguiu achar a flecha marcada, caída no céu?
Naju: Consegui achar, mas porque a flecha ainda está lá? Porque AOB não pegou a flecha e continuou a caçada?
Nami: Por que perto das 3 zebras, um pouco abaixo delas, tem uma estrela muito brilhante, a estrela de um grande leão faminto, XAMI. O leão, do alto de uma pedra, também estava de olho nas GOREBU. E o caçador não podia se aproximar para pegar a flecha sem ser atacado pelo Leão. O Leão também estava à caça de comida. E assim, o pobre caçador ficou lá, tremendo de frio e sofrendo de sede e fome, incapaz de retornar para suas esposas que ficariam furiosas ou de pegar sua flecha. E, todo verão, nós podemos recontar sua história.
Já bem diz o ditado popular: “Um dia é da caça, outro do caçador”. Conheça o belo leão XAMI da região da Namíbia, percorrendo as imagens abaixo.
Naju: Mas o caçador devia ter preparado e levado mais flechas, porque ele levou só uma?
Nami: Sim, foi um grande erro. Mas nossas histórias nos ajudam a aprender com os nossos erros, ensiná-los aos nossos filhos e netos para que não cometam esses erros. Essa história nos ajuda a lembrar da importância da caça para nosso povo. E alerta dos perigos que a caça pode ter e que os caçadores precisam estar sempre atentos e preparados! Nossa história termina com um desafio das esposas a todos os caçadores.
Naju: Que desafio?
Nami: Elas desafiaram no céu todos os caçadores, com a seguinte missão:
“Caçadores da terra, vocês acham que podem se comparar a nós e serem nossos iguais? Nós desafiamos nosso próprio marido a não voltar para casa se ele não conseguir matar a caça para acabar com nossa fome. E, assim, desafiamos todos vocês, caçadores”.
A escritora Maritha Snyman realça a importância dos caçadores com outra versão dessa história. Essa versão foi traduzida e adaptada da versão publicada no livro Stories of the Southern Skies, The Crocodile who swallows the Sun, da SAASTA (South African Agency for Science and Technology Advancement). Maritha nos conta que:
O CAÇADOR SEM ESPERANÇA
Há muito tempo, o deus do céu teve sete lindas filhas que brilhavam intensamente no céu escuro à noite, as Khuseti.
Todas eram casadas com um belo caçador, mas muito desafortunado, chamado Aob.
“Você é tão inútil, eles zombaram sempre dele. Você não consegue caçar nada. Você nem vai conseguir caçar aquelas três zebras brilhantes que estão ali”, brincaram, mostrando as três estrelas bem alinhadas no alto do céu.
“Vou mostrar a vocês”, retrucou o caçador, irritado. Em sua raiva, ele esqueceu totalmente a estrela vermelha do faminto leão Xami que estava de olho nastrês zebras.
O caçador pegou seu arco e flecha e partiu para a noite escura. Com cuidado, ele apontou e puxou a corda do arco. A flecha acelerou pelo céu e… errou completamente as zebras. O caçador sem esperança sentou-se, sentindo-se muito azarado.
A estrela do Leão Xami rugiu de tanto rir. “Você perdeu de novo!”
Ele rugiu novamente, ainda rindo: “Vem aqui buscar sua flecha. Estou aguardando”.
Mas, o caçador não era corajoso o suficiente para fazer isso. Afinal, quem enfrentaria um leão feroz sem nenhuma flecha?
Ele apenas olhou para cima com medo e tristeza. Ele estava com muito medo de passar pela estrela do Leão, que certamente o mataria.
Ele também estava relutante em voltar para casa para a zombaria interminável de suas esposas estrelas.
Hoje sua flecha Ab ainda está presa na escuridão do céu depois das três zebras brilhantes.
Naju: É mesmo, os nossos caçadores têm uma grande missão, alimentar a aldeia correndo muitos perigos. Adorei a sua história, mas, vovó, podemos ver o que acontece com as estrelas deles no resto da noite?
Nami: Sim, vamos ver o que ocorre com a família de estrelas das três Zebras e o caminho de estrelas até o amanhecer pois essa noite está com céu muito limpo e sem nuvens.
Observe nas imagens abaixo o que ocorre com o caçador, as esposas, as zebras e o leão ao longo da noite e da madrugada até o Sol começar a nascer.
Nami: Agora já está quase amanhecendo. Vamos dormir um pouquinho antes de começar o dia. Ainda temos muitas estrelas e histórias para contar, mas isso fica para outra noite.
Principais fontes da história
A história aparece em inúmeras pesquisas na área, das quais destaco as seguintes:
Primeiramente, o grande levantamento de pesquisas sobre Astronomia Cultural de povos africanos, o livro Venus Rising: South African Astronomical Beliefs, Customs and Observations de P. G. Alcock que reune um grande número de pesquisas sobre a cosmologia e mitologias celestes de diferentes povos africanos. O levantamento não aprofunda muito as histórias, mas serve com uma grande fonte de referências dos pesquisadores originais que investigam mais a fundo as histórias celestes culturais e faz pequenas análises sobre divergências e incogruências nas narrativas das pesquisas.
O livro Stories of the Southern Skies, The Crocodile who swallows the Sun, da SAASTA (South African Agency for Science and Technology Advancement) apresenta a história como um dos contos do livro.
E também aparece no livro Espécimes do folclore bosquímano [San] por W.H.I. Bleek e L.C. Lloyd, publicado em 1911. Detalhes sobre as flechas aparecem em duas narrativas do livro.
Mais detalhes sobre as flechas podem ser obtidos nos artigos:
- Bushmen Arrows and Their Recent History.
- Composition of Bushmen Arrows.
- Prehistoric arrow forms in Africa as shown by surviving examples of the traditional arrows of the San Bushmen.
- Some historical bushman arrows.
O acervo de aquarelas e desenhos de George William Stow (1822-1882) inspirados na arte rupestre sul-africana estão disponíveis no acervo digital de sua obra Rock Paintings in South Africa from Parts of the Eastern Province and Orange Free State. realizada nos anos 1870, com seu assistente de etnia San.