Arco-íris, chuvas e enchentes na mitologia Yorubá (África)

Paulo Henrique Colonese, Mariana de Souza Lima, Espaço Ciência Viva.

Parte I: Os Mitos.

Arcoíris em paisagem africana. Fonte: Wallpaperflare.

Os arco-íris são comumente observados em determinadas condições metereológicas bem evidentes. Normalmente, em regiões de chuva, nubladas e também ensolaradas. Deste modo, é natural que a sua explicação e origem estejam associadas a estes fenômenos climáticos.

Nanã, a mãe do arco-íris

Os Iorubás vivem em grande parte no sudoeste da Nigéria. Havendo também comunidades significativas no Benim, Togo e Gana. Trouxeram para o Brasil uma ampla carga cultural, desenvolvida especialmente no plano religioso que os envolvia.

Ifá, o Orixá da Adivinhação, o Mensageiro do Destino, e aquele que conhece todas as histórias já acontecidas e as que ainda vão acontecer, conta que entre os Iorubás, em tempos imemoriais, vivia a mais velha de todas as mulheres, a mais antiga de todas.

Oráculo de adivinhação. Fonte: Jogo de Ikin Orossi

Ela era tão velha que até ajudou Oxalá – o Orixá Criador do Mundo – a criar a Humanidade, emprestando-lhe a lama do fundo do lago onde ela vivia para que ele moldasse o primeiro ser humano.

Essa bela história é contada na Cantiga para Oxalá e Nanã, de Nanan:

  • Odudua criou o ar, fogo e terra, água e lama pra brincar
  • De água e lodo vi chegar no aiyê, Nanã
  • A mais velha Iemanjá
  • E Oxalá com sua boa argila vem, vem, vem
  • Vem moldar, com sua boa argila vem, vem, vem
  • Traz a força que gira pra dentro e pra fora
  • De todos, todos elementos que essa cabaça
  • Que molda a existência aqui contém
  • E dessa lama, essa água parada, se forma a terra
  • Se sê, para a terra
  • E desse mangue, firme e forte, Nanã vem, “saluba Nanã!”
  • Vem nanã, mãe das lamas nanã vem, vem, vem
  • Vem curar, traz a chuva e todo bem, vem bem
  • Pois dela tudo virá, e tudo será devolvido
  • Depois de cumprida a missão
  • Cada qual, cada ser leva à lama o coração
  • “Simbora” aprender, é “philo” e “sophia”, amor e saber
  • Viemos de tão longe lá das estrelas
  • Pra nessa terra vir morrer ê ê ê ê ê ê
  • E vem com seu ibiri, ibiri, ibiri
  • Vem com seu cetro de fibra de folha de dendezeiro
  • Atada, enfeitada com tiras de couro ornadas de búzios
  • Nanã vem. Todo bem que vem, vem bem
  • Sou feliz com vocês que são do bem
  • Não fico a esperar que as estrelas
  • Lá do céu venham baixar
  • Com os meus pés me levantei
  • Pois dessa lama muito vi e pouco sei.

Apesar de velha, era uma mulher lindíssima e uma deusa. Nanã (nanan = raiz) era seu nome. Ela é a Orixá das Chuvas, dos Mangues, dos Pântanos, da Lama e Senhora da Morte. É responsável pelos portais da reencarnação (nascimento) e da desencarnação (morte).

Afirma-se que Nanã era a rainha de um povo e que tinha poder sobre os mortos. Para roubar esse poder, Oxalá desposou-a, mas não ligava para ela. Nanã, então, fez um feitiço para ter um filho.

OMULU, ORIXÁ DAS DOENÇAS E DA SAÚDE

Tudo aconteceu como ela queria mas, por causa do feitiço, o filho, Omolu nasceu todo deformado, com várias doenças de pele. Omulu é o Orixá da Varíola e Doenças Contagiosas, responsável pela catalepsia, epilepsia e convulsões. Responsável pela terra, é ligado simbolicamente ao mundo dos mortos, como sua mãe. É o Senhor das Doenças e da Saúde, especialmente as epidêmicas como a varíola; e cuida de suas respectivas curas.

Omulu, Obaluwaye, Orixá das Doenças Contagiosas e da Saúde, Veste roupa que esconde as chagas com que nasceu em sua pele.

Não admitindo cuidar de uma criança assim, Nanã acabou abandonando-o numa praia, onde Iemanjá o achou abandonado, quase morrendo. Ela o curou e criou como se fosse sua mãe, dando-lhe todo o amor e carinho. Sabendo do que Nanã fez, Oxalá condenou-a a ter mais filhos e a expulsou do reino, ordenando-lhe que fosse viver num pântano escuro e sombrio.  

OXUMARÉ, O ORIXÁ ARCO-ÍRIS

Seu segundo filho, ao contrário de Omulu, era saudável e belo. Entretanto, Naná foi castigada por ter abandonado o primeiro filho, e Oxumaré não ficou ao seu lado, viajando por toda parte. O príncipe Oxumaré usava roupas de todas as cores, que realçavam ainda mais sua beleza.

Versão moderna para quadrinhos de Oxumaré do ilustrador baiano Hugo Canuto.

Ifá dizia que houve um tempo em que a Terra foi quase destruída pelas Chuvas.  Chovia o tempo todo, o solo ficou todo encharcado, e os rios transbordaram para fora de seus leitos, de tanta água. As plantas e os animais morriam afogados, a doença e a morte prosperavam.

“A chuva é coisa boa, mas não pode durar para sempre”, pensou Oxumarê.

Então, o jovem filho de Nanã, apontou seu punhal de bronze para o alto e com ele fez um grande corte em arco no céu, ferindo a Chuva.

A Chuva parou de cair e o Sol pôde brilhar de novo. Desde então, quando chove muito, Oxumarê risca o céu com seu punhal de bronze. Quando isso acontece, todos podem ver o belo príncipe vestido com suas roupas multicoloridas. Todos podem vê-lo na forma de arco-íris. Na língua ioruba, Oxumarê quer dizer exatamente isso: o Arco-Colorido.

Oxumaré é o orixá que liga o céu à terra, deus do arco-íris, representado por uma serpente, senhor da agilidade, da sorte, da transformação, do ciclo da vida, e da dualidade, já que passa 6 meses como cobra e 6 meses como homem. É o único orixá que pode ir para O Orun (Céu) sem sair do Aiyé (Terra).

Na mitologia Yoruba, os Orixás (yoruba Òrìsà) são ancestrais divinizados africanos que correspondem a forças da Natureza e os seus arquétipos estão relacionados às manifestações dessas forças. As características de cada Orixá aproximam-os dos seres humanos, pois eles manifestam-se através de emoções como nós. Sentem raiva, ciúmes . Cada Orixá tem ainda o seu sistema simbólico particular, composto de cores, comidas, cantigas, rezas, ambientes, espaços físicos e até horários.

Observamos, então, que os arcos-coloridos estão intimamente relacionados ao final ou início do período de chuvas e enchentes – quando as nuvens são iluminadas pela luz solar nas condições exatas para que podem ser observados e admirados.

Arco-íris formado bem na fronteira de região com chuva e região sem chuva, caindo no horizonte sobre uma girafa. Reserva natural Masai Mara no Quênia. (c) Paul Goldstein.

Além disso, seu significado é enriquecido com uma série de valores e conflitos sociais e ambientais associados ao seu núcleo de Orixás e respectivos simbolismos:

  • a chuva, a tempestade, a água, a vida e a morte.
  • a beleza e a feiura, a doença e a saúde.
  • o cuidar e o abandonar à morte e à doença

todos, de algum modo, correlacionados às chuvas e enchentes e as condições de vida e saúde que delas decorrem.

Oxumaré. Menote Cordeiro. Orixás, Divinamentos.

Algumas considerações sobre o mito.

O mito de Oxumarê possui várias versões transmitidas de forma oral com pequenas variações em sua narrativa. A história apresentada sintetiza as principais características comuns às várias versões existentes.

A história inicia contextualizando a origem de Oxumarê, apresentando dois personagens responsáveis pela preservação do patrimônio cultural da cultura. A primeira personagem é Ifá, o senhor da história que transcende o passado e percorre os domínios do passado, presente e futuro. A segunda personagem Nanã, hora apresentada como mulher, hora como deusa, está associada pela sua antiguidade à origem da humanidade. Ela colaborou com a criação do primeiro ser humano, dando a Oxalá o material primordial necessário – a lama para a criação.

Em seguida, como mãe, Nanã gera dois filhos, Omulu e Oxumarê, que vão simbolizar forças e situações antagônicas na natureza como podemos sintetizar no quadro abaixo.

Características e simbolização Omulu Oxumarê
Vestimenta Palha, sem adornos ou enfeites. Joias, ornamentos e cores alegres.
Aspectos estéticos e saúde.Pele com marcas e chagas de doenças. Corpo totalmente coberto para esconder as marcas da doença. Associado à feiura. Associado a beleza, sempre bem vestido. Associado a muitas cores vibrantes e alegres.
Associação a fenômenos Doenças naturais, epidemias. Arco-íris, simbolizando o fim de tempestades e inundações.
Poderes associados Orixá das doenças ou da varíola e outras doenças contagiosas. Tendo o poder da cura sobre as doenças e epidemias. Representa também a riqueza, prosperidade e fortuna. Estando associado ao fim das inundações e tempestades e cura de doenças visuais. Na cultura nagô representa a mobilidade, simbolizando as forças que dirigem o movimento.

Quadro 1. Comparação significados simbólicos dos orixás irmãos Omulu e Oxumarê.

Podemos observar que os fenômenos naturais foram simbolizados em personagens e que as relações entre os fenômenos são transformadas na narrativa da história em suas associações e oposições. Nesta cosmogonia, o arco-íris é uma conexão entre os mundos espiritual e material, e além disso está personificado na figura de Oxumarê. Vale destacar que apesar do simbolismo e de relações sobrenaturais existentes, ainda permanece uma conexão forte com o mundo natural quando a narrativa se aproxima das condições climáticas naturais que possibilitam o surgimento e as condições de visibilidade do arco-íris, sempre ao início ou final de tempestades.

Como podemos ver no mapa conceitual abaixo, Oxumarê é caracterizado por duas oposições:

  • Com seu irmão Omulu (doenças, epidemias e morte).
  • Com os orixás que comandam as tempestades e inundações.
Mapa Conceitual: Conexões e relações de Oxumaré, Orixás e fenômenos naturais.

Deste modo, Oxumarê é uma simbolização de condições ambientais e de saúde para os seres humanos.

O mito de Oxumarê é o que mais destaca as propriedades naturais envolvidas no surgimento do arco-íris e a valorização social e estética das condições climáticas. Assim, é uma das histórias muito adequada para refletir sobre as conexões entre a cultura, o mito e a ciência.